quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Qual o nosso limite? - FERREIRA GULLAR

DO LAMENTÁVEL episódio em que cinco rapazes de classe média, moradores da Barra da Tijuca, roubaram e espancaram brutalmente uma empregada doméstica, vale destacar a atitude do pai de um deles, que correu imediatamente em defesa do filhinho de 19 anos. Alegou que aqueles rapagões, sarados e violentos, eram "crianças que estudam" e por isso não deviam ficar presos, uma vez que, na prisão, seriam misturados com bandidos.
Deve-se concluir que, embora sendo capazes de roubar e espancar mulheres, rapazes que moram em condomínio da Barra da Tijuca não são bandidos, já que bandido é quem mora em favela. Isso ajuda a entender o filho que ele tem.
Se não é justo atribuir essa atitude a todos os pais de classe média, é impossível não ver nela o sinal de uma visão que se generalizou e que, de certo modo, explica o grau de impunidade que caracteriza a sociedade brasileira.
Na frase daquele "paizão", está implícita a noção de que o respeito às normas sociais é coisa secundária e mesmo condenável, porque, no fundo, encobre o ranço repressivo que herdamos do passado e a vontade de vingança contra os criminosos. Isso é uma coisa que estou cansado de ouvir da boca de advogados e até de ministros da Justiça, muitos deles herdeiros da lição rebelde dos anos 60-70: "É proibido proibir", "Não acredito em ninguém que tenha mais de 30 anos".
Tudo isso era muito divertido, mas a verdade é que contribuiu para minar o princípio de que a sociedade necessita de normas, já que, sem elas, mergulharíamos no arbítrio, na violência e no caos.
Ainda não chegamos lá, nem chegaremos, porque a maioria das pessoas sabe, sem ter lido os juristas, que o respeito às normas é condição básica do convívio social. A Justiça não nasce no fundo do quintal, ela foi inventada pelo homem que necessita dela como do ar que respira. Mas isso não impede que, como no caso do Brasil, o respeito à Justiça e a aplicação das leis sejam vistos como expressão de intolerância e repressão.
Isso se percebe a cada momento e às vezes na boca daqueles que deveriam defender a aplicação rigorosa do princípio de justiça. Não consigo me esquecer das declarações do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos defendendo o abrandamento da punição dos crimes hediondos, sob a alegação de que seu agravamento não fizera diminuir esse tipo de crime.
Ao ler tais declarações de um jurista, pensei comigo: se esse argumento é válido, então deveríamos revogar o Código Penal, já que sua vigência não impede que se pratiquem crimes no país.
Como se sabe, o condenado por crime hediondo, que até então não usufruía do direito de cumprir apenas um sexto da pena, agora usufrui, graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, bandidos queimam vivas dezenove pessoas dentro de um ônibus, são condenados a 400 anos mas, como a pena máxima no Brasil é de 30 anos, poderão estar soltos depois de cumprir apenas cinco anos, isto é, um sexto da pena. Noutras palavras: em muitos casos, a pena máxima, no Brasil, é de cinco anos.
Parece brincadeira. E isso tudo é decidido apoiado em argumentos de difícil compreensão para nós, leigos, que não gozamos da sapiência jurídica. O fraseado estrambótico escapa à nossa compreensão, enquanto sua conclusão nos deixa indignados. Dá a impressão de que o aparelho jurídico que montamos e que nos custa tão caro existe para dificultar a aplicação da Justiça e beneficiar os criminosos.
Certamente não é assim, já que a maioria dos juízes defende a vigência da Justiça. Não obstante, na prática, prevalece a impunidade.
A garantia da impunidade conta com todo um aparato, que vai desde a falta de escrúpulos do advogado de defesa -cuja função parece ser impedir que se faça justiça- até as minudências jurídicas que, na hora H, anulam o processo.
- Mas por quê, meritíssimo?
- Ele pôs vírgula entre o sujeito e o verbo! Dura lex sed lex.
Isso sem falar naquele juiz que adulterou o parecer do colega para permitir que se libertasse um dos maiores traficantes internacionais. Condenado a 20 anos por tráfico de drogas e respondendo a processos por evasão de divisas, contrabando, falsificação e apropriação indébita, foi solto por ter, segundo o referido juiz, bons antecedentes.
Bons? Pois eu diria ótimos antecedentes, levando-se em conta a noção de ética que vai tomando conta do país.

domingo, 5 de agosto de 2007

Considere este post - CECILIA GIANNETTI

APESAR DE o brasileiro médio só ler 1,8 livro ao ano e de, em 2006, termos sido chamados pela revista britânica "The Economist" -finalmente, o reconhecimento internacional- de "nação de não-leitores", as festas literárias multiplicam-se com sucesso pelo país.
No rastro da Flip, que acontece em julho, em Paraty, surgiram eventos como o Off-Flip (também em Paraty, no mesmo período de julho), Flap! (entre 29 de junho e 1º de julho, em São Paulo), Flop (Ouro Preto, Minas Gerais, novembro) e Fliporto (Porto de Galinhas, Pernambuco, setembro), entre outros.
Se eu pudesse iria a todos, é sempre divertido -os bastidores costumam ser uma versão mais aloprada da WordFest de "Garotos Incríveis", do Michael Chabon.
Mas fugiria pra tomar ar fresco (também conhecido como chope) durante qualquer debate em torno do tema literatura on-line, literatura de internet ou literatura de blog. Apesar de tal coisa não existir, o assunto é recorrente.
Existem blogs literários; existem sites jornalísticos dedicados à literatura; listas de discussão e fóruns on-line em que os usuários trocam opiniões sobre seus textos de ficção em críticas informais.
Há ainda iniciativas como a da editora inglesa Penguin Books, que lançou o blog A Million Penguins, no qual cada usuário cadastrado podia escrever um capítulo ou pedaço dele, e também reescrever partes desenvolvidas por outros usuários, resultando numa história totalmente criada pelos internautas.
Mas não existe uma "linguagem de literatura de internet". Pode existir, por exemplo, uma história que se desenvolve por meio de trocas de e-mails.
Mas não passa de um romance epistolar ambientado no século 21. Ficções curtas em posts podem ser publicadas em papel, permanecendo como ficções curtas, sem qualquer prejuízo em relação ao original. E continuará não existindo a tal da literatura de blog.
Por enquanto, o que existe é a internet como caminho para o escritor chegar ao leitor, às vezes antes que possa publicar em papel.
Há dez anos, um autor jovem, desconhecido, não tinha meia dúzia de leitores fora de seu círculo de amizades.
Hoje, se o que produz on-line é interessante, em pouco tempo seu blog ganha pencas de leitores. Ou ao menos mais do que meia dúzia deles.
E tudo isso antes que tenha um livro lançado. Por outro lado, a web não encurta o caminho até a publicação -a maioria dos editores não tem o hábito de fuçar blogs literários em busca de autores novos.
Não existe a literatura on-line como gênero.
Não existirá até que surjam histórias na web impossíveis de serem contadas no suporte livro -sob o risco de, impressas, virarem outra coisa que não é absolutamente o que se propunham ser na internet.
Aí, caso se reconheça e popularize essa ocorrência extraordinária de literatura intransponível para o papel, valerá debater o surgimento de um novo nicho.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Educar com esperança – Rosely Sayão

"Mãe, posso ir até a casa do Paulinho? Ele me chamou para jogar bola até a hora do jantar", pediu o garoto de quase dez anos. O amigo morava em frente à sua casa, e a mãe autorizou por telefone, não sem antes dar ao filho as orientações que julgou necessárias. Essa mãe agiu de modo sensato e responsável nas duas atitudes que tomou.

Ao permitir que o filho saísse de casa sozinho, mesmo para um curto trajeto nessa idade, ela o incentivava a se apropriar do espaço público e a construir autonomia para ir e vir dos lugares. Ao passar as orientações, ela realizou a tutela necessária, já que criança e adolescente ainda não costumam planejar suas ações nem tomar determinados cuidados, a não ser quando alertados. A mãe ajudou o filho, portanto, a aprender a se cuidar e a administrar a autonomia que ela o estava ajudando a construir para ver como ele responderia. Essa é a atitude mais educativa: passar responsabilidades e aguardar para ver como a criança reage.

"Não atravesse a rua fora da faixa de pedestre, não corra, não se desvie do caminho e não volte para casa depois do horário", foram as instruções da mãe antes que ele desligasse o telefone e saísse de casa -provavelmente correndo.

Ao determinar o modo como o filho deveria agir, a mãe foi cuidadosa porque forneceu ao garoto pontos de referência. Com as ordens, ela mostrou que ele deveria prestar atenção para realizar o trajeto com segurança; ao dar um limite para seu retorno, ela o responsabilizou por gerir seu tempo. Isso é educar para a construção de autonomia: ensinar o filho a se autogovernar, tutelando o necessário enquanto ele precisa.

O problema foi a forma como ela passou as orientações: partiu sempre do negativo. Esse é um cacoete comum em educação: pais e professores têm o mau costume de quase sempre considerar primeiro os erros que os mais novos podem cometer. Por que temos sempre de começar pelos problemas, pelos limites, pelos equívocos e pela ameaça de punição quando educamos? Podemos começar pela crença de que a criança procure acertar e descubra o espaço que tem para experimentar e encontrar soluções. A atitude otimista, aliás, é a única possível para quem educa.

Essa mãe poderia ter dito a mesma coisa pelo positivo: "Atravesse a rua na faixa, vá andando sempre rumo à casa do Paulinho e volte no horário combinado". Qual a diferença entre as duas formas?

A forma usada pela mãe sinaliza o que ela imaginou que o filho pudesse fazer, não é? Quando se diz a uma criança "não faça" é porque se credita a ela a vontade de fazer. Se não considero tal hipótese, qual o motivo para apontar o negativo? Acontece que nem sempre a criança apresenta a vontade que se imagina, mas, a partir do momento em que alguém aponta que ela possa ter, há grandes chances de ela realmente ter. Por isso é que o proibido é tão tentador.

Uma leitora contou que a filha, de quase dois anos, estava descobrindo a casa até que chegou à estante do pai, para quem os livros são muito importantes. Como as prateleiras chegavam até o chão, logo a menina quis pegar os livros. A mãe ajudou, explicou como manusear e finalizou dizendo: Só não pode rasgar. Pronto: logo depois, lá estava ela rasgando livros. Talvez a mãe não precisasse dar a deixa: poderia apenas ter ensinado os cuidados e, caso a filha rasgasse algum por acaso, aí sim poderia dizer que isso era algo a ser evitado.

Que tal passarmos a assinalar mais as possibilidades do que os limites quando educamos? Tal atitude demonstraria mais esperança em relação aos mais novos e talvez isso seja algo precioso para que eles percebam sua potência.

terça-feira, 24 de julho de 2007

A precisão e o pudor - BIA ABRAMO

Na noite do acidente, o noticiário de TV errou muito, chutou ainda mais e, de maneira geral, revelou uma desajeitada falta de pudor.

O adjetivo mais repetido referia-se ao estado das vítimas, que não bastassem estar mortas, recebiam a descrição terrível -vamos declinar dela aqui- a cada menção.
O erro e a especulação são quase da natureza desse tipo de cobertura, bem como a desinformação proposital por parte dos envolvidos, a omissão e a falta de transparência de autoridades. É imprevisível, as condições de apuração são precárias e o trabalho do jornalista é o de se orientar, inclusive literalmente, entre os escombros.
Os números, por exemplo, custaram a se fixar - eram 162? 170? 175? A trajetória do avião até se chocar com o prédio também permaneceu misteriosa por boa parte da noite.
Nesse sentido, patinam todas as emissoras. Mas também acertam, no improviso, no acaso e no talento individual. A Bandeirantes e a Cultura ganharam em agilidade de reportagem; a Globo, tanto no "Jornal Nacional" como nos boletins que cortaram a programação que seguia num estranho estado de normalidade, em edições mais completas e mais consistentes.
O erro de tom, os deslizes nos detalhes, entretanto, são de outra espécie e envolvem, no fundo, uma concepção de que jornalismo se quer praticar. De novo, nesse sentido também todas desafinam. De editorialização da tragédia a sensacionalismo francamente sádico, havia de tudo um pouco e muito, mas muito mesmo, da famosa insensibilidade da mídia.
Não é para obedecer ao princípio de precisão que se repete, à exaustão, a informação de como deveriam estar os corpos depois de um choque e um incêndio de uma brutalidade, a bem dizer, inomináveis. Estamos na televisão e, portanto, eles são bastante visíveis -as imagens, a princípio, indecifráveis, iam pouco a pouco tornando-se legíveis.
O prédio em chamas, dificílimas de debelar, a cauda do avião, só ela, bem vermelha da pintura e com o logotipo da TAM, bem nítidos- o sentido, o horror, configurava-se a qualquer um que lhe dedicasse atenção.
Não precisava dizer, não precisavam dizer tantas vezes.

domingo, 22 de julho de 2007

Toque e arremetida - IVAN SANT'ANNA

As autoridades aeronáuticas divulgaram imagens, colhidas na terça-feira, do circuito interno de televisão do aeroporto de Congonhas. Elas mostram duas aeronaves A320, da TAM, se movimentando pela pista na mesma direção. Uma delas percorre o trecho coberto pela câmera em 12 segundos. A outra, em apenas três. Esta última era o fatídico vôo JJ-3054. Essa diferença é apontada como sinal de que o 3054 ia rápido demais. Diagnóstico errado!
A aeronave "lenta" estava pousando. A outra, arremetendo. Ou seja, o piloto da primeira fazia todos os esforços para parar, enquanto o comandante do 3054 lutava para adquirir sustentação e voltar a voar. Desde as primeiras aulas de vôo, nos aeroclubes, os pilotos aprendem uma manobra chamada "toque e arremetida". Pousa-se, acelera-se e decola-se de novo. No início, é estressante. O aluno acaba de aterrissar e o instrutor grita: - Arremete! - Nesse instante, é preciso levar as manetes (os aceleradores) à frente e decolar antes que a pista acabe. Com o tempo, vira rotina.
Os passageiros mais voados costumam passar pela experiência de uma arremetida duas ou três vezes na vida. Já os pilotos de jatos comerciais fazem isso centenas de vezes, nos simuladores de vôo. Portanto estão aptos para isso. Já sabem, de cor e salteado, as providências necessárias para abortar um pouso e reiniciar o vôo.
O que interessa descobrir, no caso do JJ-3054, são as razões que levaram o comandante Di Sacco a arremeter o Airbus. E, principalmente, por que motivo essa arremetida não deu certo, fazendo com que a aeronave guinasse para a esquerda, ultrapassasse o limite do campo e, sem ganhar a sustentação necessária para voar, saltasse sobre a avenida e se chocasse contra o prédio do outro lado.
Na cauda do A320 havia duas caixas-pretas, recuperadas pelas equipes de investigação. Uma delas, o CVR (Cockpit Voice Recorder), grava as conversas travadas na cabine de comando nos 30 minutos que antecederam o desastre. A outra, o FDR (Flight Data Recorder), registra os procedimentos adotados pelos pilotos no vôo.
Neste momento, nos Estados Unidos, um perito já deve estar se debruçando sobre os dados dessas caixas-pretas. Ele irá descobrir, sem dificuldades, o que aconteceu nos momentos que antecederam o desastre. O avião pode ter aquaplanado (na pista novinha, lisa feito um sabonete, inaugurada e posta em funcionamento sem as ranhuras), pode ter chegado ao solo com velocidade excessiva, algum equipamento (um reverso, por exemplo) pode ter falhado ou algum instrumento pode ter apresentado uma leitura errada. São diversas as hipóteses.
A segunda resposta (porque o A320 não atingiu a velocidade necessária para decolar) também está gravada nas caixas-pretas. Hesitação, ausência de um procedimento (recolher os freios aerodinâmicos, por exemplo), um comando errado. Tudo está lá e vai aparecer. E entrará para os manuais da aviação, será ensinado nas escolas de vôo. Entre todas essas especulações, uma conclusão já pode ser tirada: os pilotos do JJ-3054 estavam no pior dos mundos: muito rápidos para pousar, muito lentos para arremeter.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

A tragédia vista de Porto Alegre - MOACYR SCLIAR

Porto Alegre é uma cidade grande, como as metrópoles brasileiras. Mas mesmo as cidades grandes, por vezes, voltam no tempo e regridem à época em que eram pequenas cidadezinhas interioranas, provincianas. Isto aconteceu com a capital gaúcha, na última terça. A notícia do medonho acidente com o avião da TAM foi recebida com incrédulo horror. As pessoas não podiam acreditar que aquilo tinha acontecido. E aí veio o pânico, o desespero.
Famílias inteiras correram para o único lugar em que podiam obter informações, o aeroporto Salgado Filho. Um aeroporto do qual os porto-alegrenses se orgulham, mas que era, naquele momento, cenário para cenas de dor e de sofrimento. A notícia rapidamente se espalhou. Num primeiro momento, não se sabia ao certo quem estava a bordo, o que desencadeou uma verdadeira onda de ansiedade. A cidade, agora, era uma única família, com as pessoas ligando umas para as outras, querendo saber se estava tudo bem, se amigos e conhecidos não teriam, por acaso, viajado no fatídico avião.
Particularmente, recebi numerosos telefonemas, tanto do Rio Grande do Sul como de outros Estados, o que me fez pensar nesta nova, e sombria, forma de identificar amigos: são aqueles que nos telefonam nessas horas. Depois veio a lista e a consternação foi geral. Muitas das vítimas eram pessoas conhecidas e estimadas. Havia políticos, esportistas, jovens empresários. A sensação era a de uma catástrofe.
Nas casas, os olhares estavam fixados na tela de tevê. De repente, Congonhas transformava-se no fulcro da tragédia. O que não deixa de ter um amargo simbolismo. Para os habitantes de um Estado situado na ponta do país, Rio e São Paulo são os grandes pontos de referência, sonhos gaúchos, por assim dizer. E Congonhas era a porta de entrada para este sonho.
Desembarcar em Congonhas era, para empresários e estudantes, para políticos e artistas, o começo de uma excitante aventura. De repente, a aventura revelava-se um pesadelo. E a pergunta que a gente pode se fazer é: por que os sonhos se transformam em catástrofes? O que aconteceu, que erros ou equívocos foram cometidos para que isso acontecesse?
É uma pergunta à qual precisamos responder. Em primeiro lugar, trata-se de um dever que temos para com as vítimas, gaúchos, paulistas, mineiros, não importa: esta é uma tragédia brasileira, e como tal tem de ser considerada. Em segundo lugar, porque precisamos, de uma vez por todas, descobrir qual o caminho que, afinal, deve o nosso país seguir, para melhorar a existência de seus cidadãos. E, finalmente, porque precisamos nos reconciliar com nossos símbolos.
Congonhas era, com suas limitações, uma imagem do progresso brasileiro, um lugar dinâmico, mesmo que confuso. Não pode ficar na história do país como um cenário de holocausto. Precisamos dar asas aos nossos sonhos. Mas precisamos assegurar que eles possam pousar em segurança, sem aterrorizar Porto Alegre ou qualquer outra cidade brasileira.

domingo, 15 de julho de 2007

Na Flip, todos os autores amam amar - NOEMI JAFFE

Nietzsche diz que os amantes amam mais o amor do que a pessoa amada. Coetzee, Nadine Gordimer, Amós Oz, Alan Pauls, Will Self e, eu arriscaria, todos os autores presentes na Flip, colonizam, descolonizam, ironizam, se perdem para dificilmente se achar em labirintos de parênteses, impossibilidades, dores e encantamentos para voltarem para o assunto único: o amor.

Três dias de Flip, umas dez mesas e uma conclusão entre óbvia e misteriosa: todos eles amam amar. Mas o homenageado da festa já dizia: "Só os profetas enxergam o óbvio".
Alan Pauls me diz que "todo relacionamento já contém em si mesmo a futura separação" e que ela seria, na verdade, a "obra magistral de um relacionamento". E que "é preciso que haja zonas de sombra" para que a transparência que, segundo ele, é o monstro do amor, não o acabe assassinando. Nadine Gordimer diz "que os amantes enxergam com o terceiro olho coisas que só eles vêem na órbita do olho do amado". Will Self, o muso cínico da Flip, diz que "o homem amado, com quem a mulher divide as colheres da gaveta, é sempre ele o perverso, aquele encarregado de destruí-la".

Fernando Pessoa (que não está na Flip) já sabia que todas as cartas de amor são ridículas. Alan Pauls, categórico, diz que "o amante é aquele que não tem vergonha de ser ridículo". E Nelson Rodrigues, gênio trágico, já sabia que "só os imbecis têm medo do ridículo". Amar, enfim, é absurdo. É entregar-se abertamente à dor e à deselegância. Mas quem sabe também seja o elixir que faltava para a maldição contemporânea da atitude "blasé" que, em nome de não cair no ridículo, é capaz até de não amar.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Bichos - CECILIA GIANNETTI

"Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós."
Graciliano Ramos

ERA ASSIM que Graciliano se referia à raça dos escritores, incluindo-se na definição em carta à irmã Heloísa, escrita em 1935. Na Festa Literária Internacional de Parati, que acabou domingo último, bicharada escrevedora concentrou-se por quatro dias, lendo, comendo, bebendo e discutindo pelas ruas de pedras bulbosas, botecos repletos, calor de lascar de dia e, à noite, o frio combatido com casacões e cachaça produzida nos alambiques da cidade.
No meio da festa, ando até a rodoviária para descansar um pouco da tal da vida literária -a lata de sardinhas do mercado editorial em que se transforma o centro histórico da cidade durante a Flip. Gente de letras. O sol não dá sinal de que vai parar de tostá-las, suas cabeças premiadas, Nobels e Astúrias e coisa e tal.
No terminal de ônibus, uma velha agarrada a uma sacola de plástico olha fixamente para uma TV, hipnotizada pelos orientais lutando na tela. Crianças com uniforme de escola pública esperam ônibus para cidades vizinhas, precisam viajar para aprender o be-a-básico. Roem algum tipo de pão seco e sem recheio, fazendo barulho e mostrando como o mastigam, dentes podres tão cedo.
Um cachorro preto ronda as crianças, trota com a altivez que os cavalos puxadores de carroça da cidade não têm, os que levam tocos de árvore aos restaurantes de forno a lenha ou vão montados. Não late.
Tremendo beco essa vida às vezes, quando se é bicho. O escritor norte-americano Jim Dodge, convidado da festa, passou os quatro dias em coletivas e sessões de autógrafos, em companhia de uma pata de gesso que fizeram segui-lo, a título de marketing por seu cult-livro "Fup" -que trata, justamente, de uma pata gorda. Inicialmente, Dodge ficou constrangido com a coisa; depois já brincava com o bico da Fup fake.
Na praça, patos passaram a semana num cercadinho cheio de bonecos representativos do folclore literário. Escritores chegaram a tramar, em delírio noturno, uma ação ecoterrorista para libertar os patos. Mas surgiu o problema: libertar os bichos e soltar onde? Os patos continuaram fazendo parte da decoração da festa.
Caminho de volta à cidade puxando a bolsa que levo nas costas com a dignidade dos cavalos tronchos, enxergando tanto quanto eles: não se pode despregar os olhos do chão em Paraty ou as pedras te passam a perna. Cada passo é uma surpresa, pedras largas sucedem-se às menores, alto e baixo relevo, escorregadio. Limo, lama, essas coisas que se apegam à gente quando ninguém mais se apegaria. Entro na rua Dona Geralda e agora esbugalho os olhos, atenta aos conhecidos. Passam aos trancos e barrancos pelas calçadas, acenando com livros nas mãos.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Mulher tem memória - DANUZA LEÃO

VOCÊ É medrosa? E quem não é? E de que você tem medo? Bem, existem os medos básicos: de barata, de rato, de cobra, da escuridão.

Mas existem outros, nos quais quase não se pensa, mas dos quais se tem pânico -e esses são os piores.

São os medos subjetivos, quando se faz algo que não se deveria, de ser punida; por um pai imaginário, por Deus, por um alguém que não faz outra coisa a não ser olhar atentamente para tudo que você faz, para premiar ou castigar. De preferência, castigar.

Existem outros medos nos quais não se pensa mas que são permanentes: medo de ficar doente, de ficar velha e sozinha, de morrer. Quando se pensa em todos esses medos, chega a surpreender como podemos, às vezes, passar horas falando bobagem e dando risada.

Quando criança, você teve medo de seu pai? Se teve, vai passar a vida inteira tendo medo do marido e do patrão, símbolos da autoridade masculina.

E o medo da maldade? E do olho grande?

Medo tem a ver com culpa, e quem é culpada vive sempre com medo do castigo.

Existem as pessoas que não são culpadas de nada, e as que são culpadas de tudo. As primeiras passam pela vida felizes, felizes; já as outras acham que, se no lugar de terem comprado aquele batom tivessem mandado o dinheiro para os necessitados da África, teriam pelo menos feito sua parte. Como é difícil viver.

Mas é preciso não confundir o medo com a covardia, e às vezes -aliás, o tempo todo- é preciso se posicionar, sem medo. Se posicionar, no caso, é apenas organizar seus pensamentos e ter suas opiniões, o que, se para alguns é simples, para outros é quase impossível.

Por que será? Serão essas pessoas tão reprimidas que isso as impede não apenas de dar sua opinião mas até de terem uma? Ou será medo?

Existem alguns medos bem concretos: da reação daquele homem quando você anuncia que está indo embora. Com todas as conquistas que as mulheres conseguiram, nessa hora o medo é físico -afinal, os homens costumam ser agressivos, mais fortes que nós (fisicamente), e às vezes, quando feridos, passam dos limites. Outro medo é quando, já com o novo, você cruza pela primeira vez com o que foi abandonado.

Mas os homens também têm seus medos, sobretudo quando são eles que abandonam. As mulheres -mais emocionais e menos civilizadas- são capazes de tudo, quando deixadas; mulher não esquece -nem perdoa.

Aconteceu com um casal de velhinhos -bem velhinhos mesmo- que estava visitando a filha, num domingo. Falavam sobre o passado, e num determinado momento ela perguntou -afinal, já havia tanto tempo- se ele havia tido um caso com uma determinada mulher, décadas atrás, o que na época ele negou com firmeza.

A conversa estava tão amena, a paz tão grande, com a família toda reunida, que ele disse que sim, era verdade. Ela avançou no pescoço dele e foi preciso a filha e o genro para separá-los. Apesar de já terem passado dos 80, ela passou meses sem falar com ele.

E é bom que os homens também tenham medo, pois uma mulher com raiva é muito mais perigosa do que um homem com um revólver na mão.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O afogado mais bonito do mundo - RUBEM ALVES

SOU ANTROPÓFAGO. DEVORO livros. Quem me ensinou foi Murilo Mendes: livros são feitos com a carne e o sangue dos que os escreveram. Os hábitos de antropófago determinam a maneira como escolho livros. Só leio livros escritos com sangue. Depois que os devoro, deixam de pertencer ao autor. São meus porque circulam na minha carne e no meu sangue. É o caso do conto "O Afogado Mais Bonito do Mundo", de Gabriel García Márquez. Ele escreveu. Eu li e devorei. Agora é meu. Eu o reconto.

É sobre uma vila de pescadores perdida em nenhum lugar, o enfado misturado com o ar, cada novo dia já nascendo velho, as mesmas palavras ocas, os mesmos gestos vazios, os mesmos corpos opacos, a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais se lembrava...
Aconteceu que, num dia como todos os outros, um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar. E ele gritou. Todos correram. Num lugar como aquele até uma forma estranha é motivo de festa. E ali ficaram na praia, olhando, esperando. Até que o mar, sem pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia, para o desapontamento de todos: era um homem morto. Todos os homens mortos são parecidos porque há apenas uma coisa a se fazer com eles: enterrar. E, naquela vila, o costume era que as mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carregaram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora. E o silêncio era grande enquanto o limpavam das algas e liquens, mortalhas verdes do mar.

Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio. Uma mulher balbuciou: "Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto...".

Todas as mulheres, sérias e silenciosas, fizeram sim com a cabeça.
De novo o silêncio foi profundo, até que uma outra voz foi ouvida. Outra mulher... "Fico pensando em como teria sido a sua voz... Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas? Será que ele conhecia aquela palavra secreta que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo?" E elas sorriram e olharam umas para as outras. De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher... "Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? Essas mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o rosto de uma mulher, será que elas sabiam abraçar e acariciar o seu corpo?". Aí todas elas riram que riram, suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro estava se transformando numa ressurreição: um movimento nas suas carnes, sonhos esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, desejos proibidos aparecendo na superfície de sua pele, os corpos vivos de novo e os rostos opacos brilhando com a luz da alegria.
Os maridos, de fora, observavam o que estava acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao perceberem que um morto tinha um poder que eles mesmos não tinham mais. E pensaram nos sonhos que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito, nos mares que nunca tinham navegado, nas mulheres que nunca haviam desejado.

A história termina dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Excluidos - FERREIRA GULLAR

DE ALGUM tempo para cá, a parte da sociedade que mora em favelas e bairros pobres é qualificada como "excluída". Ou seja, os moradores da Rocinha e do Vidigal, por exemplo, não vivem ali porque não dispõem de recursos para morar em Ipanema ou Leblon, e sim porque foram excluídos da comunidade dos ricos. E eu, com minha mania de fazer perguntas desagradáveis, indago: mas alguma vez aquele pessoal da Rocinha morou nos bairros de classe média alta e dos milionários? Afora um ou outro que possa ter se arruinado socialmente ou que tenha optado por residir ali, todos os demais foram levados a isso por sua condição econômica ou porque ali nasceram. Então por que considerá-los "excluídos", se nunca estiveram "incluídos"?

No meu pouco entendimento, excluído é quem pertenceu a uma entidade ou a comunidade e dela foi expulso ou impedido de nela continuar. Quem nunca pertenceu às classes remediadas ou abastadas não pode ter sido excluído delas. Mais apropriado seria dizer que nunca foi incluído. Ainda assim, se não me equivoco, incorreríamos em erro. Senão, vejamos: a Rocinha, o Vidigal, o Borel e a favela da Maré fazem parte da cidade do Rio de Janeiro, não fazem? Seria correto afirmar, então, quer seja do ponto de vista urbanístico, quer do demográfico e social, que o Rio são apenas os bairros em que reside a parte mais abastada da população? Se fizermos isso, então, sim, estaremos excluindo parte considerável do território e da gente que constitui a cidade do Rio e que, portanto, pertence a ela.

Consideremos agora a questão de outro ponto de vista. Nos morros e favelas da cidade residem cerca de 1 milhão de pessoas, que têm vida social ativa, pois trabalham, estudam, participam de organizações comunitárias e recreativas. A maioria delas trabalha fora de sua comunidade, no comércio, na indústria, no serviço público, ou desenvolve atividade informal. Logo, participa da vida econômica, cultural e esportiva da cidade. Em que sentido, então, essa gente estaria excluída? Não resta dúvida de que as famílias faveladas, na sua ampla maioria, vivem em condições precárias, tanto no que se refere ao conforto domiciliar quanto à alimentação, às condições de higiene e saneamento, educação, saúde e segurança. Mas não estão excluídas da preocupação dos políticos que, na época das eleições, vão até lá em busca de votos. Há, nessa comunidade, cabos eleitorais, pessoas que atuam em associações de bairro e fazem a ligação com os centros políticos de poder. É certo que a grande maioria dessa gente não participa da vida política, mas isso ocorre também com as demais pessoas, morem onde morarem. Por todas essas razões, somos obrigados a concluir que os pobres e favelados estão incluídos na vida econômica, social e política da sociedade.

No entanto, isso não significa que estejam em pé de igualdade com as pessoas das classes médias e ricas. Não estão e, na sua grande maioria, descendem de gerações de brasileiros que tampouco gozaram dessa igualdade. Muitos descendem de antigos escravos e de brancos pobres que, pela carência de meios e pela desigualdade que rege o processo social, jamais tiveram possibilidade de ascender econômica e socialmente. Eles não foram excluídos simplesmente porque jamais estiveram incluídos entre os mais ou menos privilegiados.

Por que, então, cientistas políticos, sociólogos e jornalistas, entre outros, falam de exclusão social? Por ignorância não será, já que todos eles estão a par do que, bem ou mal, tentei demonstrar aqui. Creio que, consciente ou inconscientemente, procura-se levar a sociedade a pensar que a desigualdade social não é conseqüência de fatores objetivos, do sistema econômico, mas sim resultado da deliberação de pessoas cruéis que empurram os mais fracos para fora da sociedade e os condenam à miséria.

Em vez de admitir que esse sistema, por visar acima de tudo o lucro e ser, por definição, concentrador da riqueza, é que dificulta, ainda que não impeça, a ascensão dos mais pobres, procura-se fazer crer que a desigualdade é fruto de decisões pessoais. Ignora-se que, no sistema capitalista, quem não tem emprego também está incluído nele, como exército de reserva de mão-de-obra, com a função de pressionar o trabalhador e limitar-lhe as reivindicações. A eliminação da miséria beneficia o sistema pois amplia o mercado consumidor. O empresário pode ser, como você ou eu, bom ou mau, generoso ou sovina, mas, como disse Marx, "o capital governa o capitalista". O problema está no sistema, não nas pessoas.

terça-feira, 26 de junho de 2007

"Onde está o presidente?" - CARLOS HEITOR CONY

Num desses telejornais, vi o desabafo de um cidadão que não obedeceu ao conselho da ministra do Turismo para relaxar. Tomou o microfone da jornalista e gritou: "Onde está o presidente? Há algum presidente neste país?".
A cena era patética e já conhecida de todos. Gente deitada no chão, pessoas doentes chorando, o diabo. Onde estava o presidente? A pergunta pode parecer exagerada (não a cólera), mas há razão para ela. A crise no setor aéreo pertence ao Executivo, cujo chefe maior está omisso, dando conselhos e invocando um trabalho que não aparece.
Lembro dois casos. JK tomou posse na Presidência e, dias depois, rompeu-se a barragem de Orós. Ele deslocou todo o governo para lá e só voltou ao Rio após tomar as medidas executivas para resolver o problema pessoalmente, embora não fosse engenheiro nem ainda tivesse tomado pé da chefia da nação.
Outro exemplo: Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara, teve um problema de rompimento na adutora do Guandu em construção. A cidade ficaria sem água. Lacerda pegou uma cadeira, sentou-se no local da obra e só saiu dali no dia seguinte, com o problema resolvido.
Tanto num como no outro caso, a presença física do presidente e do governador apressaram a solução do caso. Evidente que Lula não precisa bivacar no saguão dos aeroportos. Mas a presença dele nos segmentos em crise, tomando providências imediatas sem delegação a terceiros, daria um cenário novo ao apagão aéreo.
Passar a responsabilidade para a cadeia hierárquica do comando vem revelando inutilidade operacional e insensibilidade política. Dá a impressão que ele está fazendo tudo quando mantém os mesmos homens nos mesmos cargos e não toma a iniciativa que se espera de um chefe do Executivo.

domingo, 24 de junho de 2007

Gilmore Girls - Bia Abramo

O CLIMA é de luto entre os fãs de seriados: foi ao ar nesta semana o último episódio da última temporada de "Gilmore Girls". Juntando com o final de "The O.C.", algumas semanas atrás, isso significa que está vago o lugar do seriado adolescente.

Os requisitos básicos são os mesmos desde "Dawsons Creek". Em primeiro lugar, é preciso ser o mais cool possível: gente linda e "perfeita", roupas legais, referências espertas à cultura pop, um tantinho de neurose em grau suficiente para tornar tramas e diálogos atraentes e divertidos... Em segundo lugar, há que ser, por mais tortuoso que o percurso até lá queira parecer, profundamente moral.

Funciona assim: ao mesmo tempo em que exibem modelos moderninhos, inclusive de comportamento, no final reitera-se a centralidade da família (ainda que tenha que se admitir famílias não tradicionais), os valores competitivos nos estudos e no trabalho e, sobretudo, a alegria do conformismo.

Permite-se tudo, desde que, no final, qualquer traço de rebeldia real, de angústia verdadeira e de experimentação existencial autêntica seja devidamente apaziguado.

"Gilmore Girls" era uma espécie de achado, porque era um seriado com duas protagonistas "adolescentes": uma no papel de filha e outra no de mãe. Ou seja, Lorelai engravida na adolescência e, com 30 e poucos, é uma mãe de uma adolescente; Rory é a filha muito madura dessa mãe muito jovem.

Em outras palavras, dois tipos contemporâneos típicos: jovens amadurecidos a fórceps e adultos eternamente presos à sua juventude. À esperteza sociológica do argumento, some-se que, de cara, há um erro -o de ter se tornado mãe ainda adolescente- a reparar e um -o de impedir, a todo custo, que a filha siga o mesmo caminho- a evitar. Para um projeto moralista, nada mais apropriado.

Todo o seriado consistia nessa tensão, da adequação dos que, em algum momento, parecem inadequados. A jovem mãe prova aos pais que, apesar do erro de juventude, é capaz de ser uma empresária de sucesso (e regular a sexualidade da filha), e a doce Rory, cerebral e sensível, é um modelo de aluna, filha, neta, amiga, namorada etc.

O pulo do gato é operar essas trajetórias, no fundo exemplares, como se fossem críticas e não convencionais. Em "Gilmore Girls" isso se fazia com diálogos muito ágeis e espertos -mãe e filha tinham quase que uma linguagem própria- e um timing cômico invejável.

domingo, 17 de junho de 2007

Essa Coca é Fanta! - MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

ELA É CARIOCA e veio a São Paulo fazer "uns trabalhos". Mas ficou no fim de semana, e fomos, com uma turma, à abertura da "galeria virtual" Florence Antonio. Casa incrível no Morumbi, projeto de Sérgio Bernardes, tudo super, ultra, mega transado. Em meio ao desfile de modernos, alguém comentou sobre o rapaz, que parecia interessado no jeitinho dela andar. Provocada, a carioca reagiu: "Não tem nada a ver: essa Coca é Fanta!".

Gírias, o Rio é bom nisso. Essa Coca é Fanta. Parece que é, mas não é. O rapaz era gay -óbvio, não precisava explicar.

Serve para várias situações. O PT, por exemplo. "Foi para isso que elegemos Lula?", perguntava Luiza Erundina na "Caros Amigos". E podia ter dito: "Essa Coca é Fanta!".

É também o caso de representantes do vetusto Judiciário, que vão se revelando tão intragáveis quanto a nossa chamada "classe política" -embora essa, na realidade, nunca tenha enganado ninguém. Ou melhor, o PT até que enganou, mas não engana mais. Dirão os ponderados que não é bem assim, que é melhor não generalizar, que a maioria dos parlamentares e governantes é gente de bem com espírito público.

Será? E o coro dos senadores em defesa do sr. Renan Calheiros -tremenda Fanta Uva de dois litros, quente e sem gás- que usava o lobista de uma empreiteira para sanar um caso extraconjugal?

Como é possível que os nobres colegas fiquem a protegê-lo, que ele continue no cargo e que se encene essa ridícula farsa em torno de uma "análise" do caso no Conselho de Ética do Senado? Francamente, alguém acredita em Conselho de Ética do Senado? Ou da Câmara?

Muito tem-se falado da passividade dos brasileiros em relação à corrupção. Reforça-se a idéia da gente apática, vida de gado, povo marcado, povo feliz. No domingo, José Alexandre Sheinkman, em sua coluna na Folha, manifestou a esperança de que, a exemplo do que ocorreu nos EUA no século 19, os brasileiros se tornem mais exigentes em relação ao nível de honestidade dos homens públicos. Tomara.

Mas a inexistência de manifestações públicas contra a roubalheira parece ser menos uma questão de caráter nacional e mais um problema político. Durante anos, o PT posou de ético e controlou as instâncias de mobilização social. Mas agora o partido se revelou corrupto e sua militância, pelega. Vivêssemos sob um governo tucano e as manifestações contra a corrupção possivelmente estariam nas ruas.

Ao mesmo tempo, o que deveria ser a oposição é risível. E sempre esteve desconectada dos chamados movimentos sociais -do PFL, que adotou a cômica sigla Democratas, ao PSDB, que vai sendo atraído pelo campo gravitacional de Lula, hábil articulador de um novo (velho) centrão. À esquerda, resta o PSOL, que está mais para banda de música do que para outra coisa.

O desnudamento do PT deixou a política sem um ponto de referência crível, capaz de articular e potencializar o sentimento de indignação que existe, sim, em setores importantes -os mais bem informados- da sociedade brasileira.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Ídolos Brasileirinho - EDUARDO REIS

O programa Ídolos do SBT é um sucesso de venda e público isso não há a menor dúvida, o programa é o sonho do departamento comercial da emissora e vem rendendo bons índices no Ibope na briga pela vice-liderança.

Porém somente nesta segunda versão é que o programa realmente ganhou a cara do Brasil, o que não se esperava que acontecesse tão rapidamente, já que a formula é importada do sucesso norte americano, American Idol, que na verdade também não é o original, mais isso é detalhe. O certo é que o Ídolos tentou de todas as formas em sua primeira edição seguir as regras do seu abre alas americano, o que gerou um programa brasileiro sem a menor cara de Brasil, onde seus cantores, salvo raras exceções queriam ser o novo sucesso pop, quando na verdade esse tão sonhado gênero nunca existiu no Brasil.

Ser pop no nosso país é ser popular mais não chega a ser um gênero como ocorre em outros paises, aqui você pode ser pop cantando sertanejo, axé, pagode, calypso, rock, mais se você quer ser um cantor pop você vai acabar assim como o vencedor da edição passada do programa, no esquecimento. Infelizmente esqueceram de avisar ao Leandro que não há espaço para esse tipo de cantor no Brasil.

Mais afinal o que torna o programa mais brasileiro? Com certeza não é a direção do programa que insiste em seguir uma linha muito próxima ao padrão americano, porém que peca em não ter a mesma estrutura deles, deixando a desejar em coisas básicas para o programa como uma banda e a edição ao vivo.

Os apresentadores também não ajudam em nada, parecem dois robôs, suas falas parecem que já foram marcadas pela direção, quando isso não acontece e fazem uma improvisação, deixam transparecer suas imaturidades como apresentadores, mais isso é aceitável, já que também existem poucos, porém bons momentos de lucidez, além deles não serem a atração principal deste show.

Os jurados é um caso a parte, esses sim trazem com sigo a originalidade, eles não querem imitar os jurados de fora, eles passam uma verdade, porém pouco falam e pouco ajudam o candidato, muitas vezes se prendem em detalhes bestas para comentar como a dança, o cabelo ou a roupa do candidato, ta certo que para ser um ídolo você deve cuidar de tudo, mais não deve ser o principal.

Mais na verdade onde o Brasil mostrou a sua cara dentro do programa foi nos candidatos, agora sim temos a diversidade brasileira sendo exposta no programa, o país é uma mistura de ritmos, onde a sua maioria esta lá representada, nesta edição temos pagodeiro, sertanejo, cantora de calypso, black music, cantores românticos, rap, temos de um tudo, e isso deixa o programa mais interessante de se assistir, por isso se você gosta de diversidade, não desgruda.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Ópera sertaneja - ESTHER HAMBURGER

A minissérie "A Pedra do Reino", adaptada do romance homônimo de Ariano Suassuna, com direção de Luiz Fernando Carvalho, que estréia na terça, é um épico que se desdobra em vários níveis.
Com traços autobiográficos, o texto conta a história de d. Pedro Dinis Quaderna, protagonista e narrador tragicômico da história de um reino mítico, alegoria de um certo Brasil, com sede no grandioso sertão do Cariri.
O narrador é obcecado pela retomada da coroa de seus ancestrais, disputada em lutas de sangue. Mas almeja também a glória da academia, capaz de elevar um autor genial à condição imortal.
A árdua tarefa de condensar o romance colossal, pleno de referências à história do Brasil mas também ao universo mítico das narrativas medievais, ganhou vida por meio de uma produção, filmada com uma câmera só, em super 16 mm, que reúne a Globo e a independente Academia de Cinema.
O espírito épico do romance foi transposto para a própria produção, feita em locação no sertão da Paraíba. Cerca de cem pessoas, entre atores, artistas e artesãos nordestinos e uma reduzida equipe de profissionais do Rio de Janeiro e de São Paulo, conviveram durante três meses na pacata Taperoá.
O resultado dessa intensa vivência é um híbrido, em tom operístico, composto de cinema, televisão, circo e teatro.

Interlocução múltipla
A textura do trabalho resulta da troca de repertórios entre artistas e artesãos locais e profissionais da cidade grande. Essa interlocução múltipla, sob o calor ardente do sertão nordestino, transpira e dá força ao produto final.
A complexa interação provocou uma profusão de emoções fortes que se transferem à tela. O paraense Cacá Carvalho faz um magnífico juiz corregedor, que domina a cena a partir do terceiro capítulo.
Luís Carlos Vasconcelos encarna um terrível Arésio, o revoltado filho do padrinho de Quaderna. Ambos montaram seus espetáculos teatrais em Taperoá durante a preparação das filmagens.
Irandhir Santos, em sua estréia, brilha na pele do protagonista desengonçado, misto de doido e palhaço, como velho errante contador de histórias e como jovem cativo em busca de um reino encantado.
Adornos hiperbólicos enfeitaram as fachadas, as roupas, os cenários. A interpretação carregada dos atores ajuda a adensar ambientes já sobrecarregados de detalhes, produzindo atmosferas plásticas saturadas de significado.

Sem didatismo
Os figurinos vestem os personagens com detalhes de artesanato personalizado. Os cavalos-bonecos se inspiram em cada personagem (o do herói Sinésio é branco).
A narrativa não-linear flui com graça e ironia por meio das aventuras de nossos sertanejos em uma caçada na direção da monumental Pedra do Reino. A paisagem seca do sertão recebe bem bichos de lata. Não há concessões ao didatismo ou ao melodrama.
Por vezes temos dificuldades de identificar os personagens. Nem sempre as sutilezas são perceptíveis em uma primeira olhada.
A trilha sonora de Marco Antônio Guimarães, compositor do grupo Uakti, ajuda a conferir um tom cigano e mambembe que combina com o mistério enevoado da série.
"A Pedra do Reino" é o primeiro trabalho do projeto "Quadrante", que pretende viajar pelo Brasil a realizar adaptações literárias ambientadas em diferentes paisagens, sempre com a participação de artistas locais.
O projeto, a um só tempo de formação e de criação, como o circo-teatro que o inspira, busca agitar as regiões por onde passa. Promete ainda empolgar profissionais cansados da rotina pouco estimulante das produções ordinárias.
Suassuna criou um novo final para a minissérie, que valoriza o teor reflexivo das artimanhas de nosso personagem.

domingo, 10 de junho de 2007

De volta ao primeiro beijo - MOACYR SCLIAR

"O primeiro beijo é uma coisa muito falada. Sem dúvida é uma experiência muito marcante, inesquecível. O primeiro beijo é uma maturação, uma descoberta. Ao mesmo tempo, para alguns, ele pode ser um monstro assustador", diz o cineasta Esmir Filho, diretor de "Saliva". O filme conta como Marina, uma garota de 12 anos, é pressionada a dar o seu primeiro beijo no experiente Gustavo.
Folhateen

TINHA ACABADO de ler a matéria sobre o primeiro beijo, no pequeno apartamento em que morava desde que ficara viúvo, anos antes, quando (coincidência impressionante, concluiria depois) o telefone tocou. Era uma mulher, de voz fraca e rouca, que ele de início não identificou: - Aqui fala a Marília -disse a voz. Deus, a Marília! A sua primeira namorada, a garota que ele beijara (o primeiro beijo de sua vida) décadas antes! De imediato recordou a garota simpática, sorridente, com quem passeava de mãos dadas. Nunca mais a vira, ainda que freqüentemente a recordasse -e agora, ela lhe ligava. Como que adivinhando o pensamento dele, ela explicou: - Estou no hospital, Sérgio. Com uma doença grave... E queria ver você. Pode ser? - Claro -apressou-se ele a dizer- eu vou aí agora mesmo. Anotou rapidamente o endereço, vestiu o casaco, saiu, tomou um táxi. No caminho foi evocando aquele namoro, que infelizmente não durara muito tempo -o pai dela, militar, havia sido transferido para o Norte, com o que perdido o contato -mas que o marcara profundamente. Nunca a esquecera, ainda que depois tivesse beijado várias outras moças, uma das quais se tornara a sua companheira de toda a vida, mãe de seus três filhos, avó de seus cinco netos. E não a esquecera por causa daquele primeiro beijo, tão desajeitado quanto ardente.
Chegando ao hospital foi direto ao quarto. Bateu; uma moça abriu-lhe a porta, e era igual à Marília: sua filha. Ele entrou e ali estava ela, sua primeira namorada. Quase não a reconheceu. Envelhecida, devastada pela doença, ela mal lembrava a garota sorridente que ele conhecera. Consternado, aproximou-se, sentou-se junto ao leito. A filha disse que os deixaria a sós: precisava falar com o médico.
Olharam-se, Sérgio e Marília, ele com lágrimas correndo pelo rosto. - Você sabe por que chamei você aqui? -perguntou ela, com esforço. - Porque nunca esqueci você, Sérgio. E nunca esqueci o nosso primeiro beijo, lembra? Na porta da minha casa, depois do cinema... - Claro que lembro, Marília. Eu também nunca esqueci você... - Pois eu queria, Sérgio... Eu queria muito... Que você me beijasse de novo. Você sabe, os médicos não me deram muito tempo... E eu queria levar comigo esta recordação...
Ele levantou-se, aproximou-se dela, beijou os lábios fanados. E aí, como por milagre, o tempo voltou atrás e de repente eles eram os jovenzinhos de décadas antes, beijando-se à porta da casa dela. Mas a emoção era demais para ele: pediu desculpas, tinha de ir. A filha, parada à porta do quarto, agradeceu-lhe: você fez um grande bem à minha mãe. E acrescentou, esperançosa: - Acho que ela agora vai melhorar. Não melhorou. Na semana seguinte, Sérgio viu no jornal o convite para o enterro. Mas, ao contrário do que poderia esperar, apenas sorriu. Tinha descoberto que o primeiro beijo dura para sempre. Ou pelo menos assim queria acreditar.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Seria uma pena - CARLOS HEITOR CONY

Se dependesse de mim, Lula teria sofrido um impeachment no final de seu primeiro mandato, por conta dos escândalos do mensalão. Impossível que ele não soubesse e não tolerasse a corrupção que se instalou à sua volta, ceifando inclusive o seu auxiliar mais próximo e importante.
A vida seguiu seu curso, ele foi reeleito, não fez nada que prestasse até agora e lançou o PAC -que está abastecendo novos escândalos. Mesmo assim, sem dar a mão à palmatória (a vida segue em frente e muita água continuará movendo os moinhos de sempre), acredito que, em termos de imagem pública e pessoal, ele se saiu bem em dois lances recentes.
Em entrevista a um jornalista da BBC, em Londres, ele deu um show, não negou fogo em nenhuma das provocações que recebeu, defendeu a posição do Brasil em relação à Amazônia de forma brilhante, fazendo o jornalista gaguejar diante das razões que apresentou.
Nesta semana, foi surpreendido com o indiciamento de seu irmão mais velho pela Polícia Federal e com a prisão de amigos de longa data que estariam comprometidos com o sistema dos bingos. Dizem que sua primeira reação foi violenta, soltou os palavrões que o homem comum costuma soltar quando contrariado. Mas, em público, falando como presidente da República, botou as coisas no devido lugar.
Pessoalmente, garantiu que acredita na inocência de seu irmão, entre outros motivos, porque "ele não tem cabeça para fazer lobby". A inocência seria de ordem intelectual. Como presidente, ele não só elogiou e apoiou as ações da PF como a estimulou a continuar o seu trabalho, tentando acabar com as diversas fontes de corrupção.
Pode ser que, por baixo do pano, ele faça algum movimento para livrar a cara do irmão e dos amigos. Será uma pena.

quinta-feira, 31 de maio de 2007

O pai-nosso e o vigário - CARLOS HEITOR CONY

Chega a ser monótono: em vésperas de Copa do Mundo, o Brasil tem 180 milhões de técnicos de futebol (o número exato varia de acordo com o aumento da população). Cada qual tem o seu time e a sua tática de jogo. A abundância de técnicos não prejudica, pelo contrário, tem dado certo: somos pentacampeões.
Seria exagero dizer, a propósito da visita de Bento 16, que somos 180 milhões de papas, cada qual com uma visão doutrinária e pragmática mais de acordo com a realidade do tempo e das bossas novas que se sucedem, modernizando gostos e comportamentos.
Nunca tentei ser técnico de futebol, aceito de má vontade aqueles que a CBF indica, torço moderadamente por eles, mas nunca tive a audácia de escalar um time ideal. O mesmo não acontece com o papado. Fui seminarista, e tinha uma tia carola que me via padre, bispo, cardeal e papa. Evidente que as minhas possibilidades eram remotíssimas, nem a padre cheguei, fiquei agnóstico aos 20 anos e passei a me preocupar com outras coisas mais ligadas ao diabo, ao mundo e à carne, que, pela voz dos meus padrinhos, eu jurara renunciar quando fui batizado, aos dois meses de idade.
De qualquer maneira, admiro todos aqueles que pretendem ensinar o pai-nosso ao vigário de plantão. Uns pelos outros, repetem os mesmíssimos conselhos, detentores que são do mapa da mina que resolve todos os problemas, não apenas do catolicismo, mas da humanidade em geral.
É lastimável que só haja um papa, ainda mais conservador, comprometido com uma doutrina de trevas, em confronto com o mundo moderno e suas conquistas. Se, por um absurdo da história e da minha biografia, eu chegasse a papa, contrataria um instituto de pesquisa para saber o que deveria pensar e ensinar.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Presença de Clarice - Ferreira Gullar

MEU primeiro encontro com Clarice Lispector foi numa tarde de domingo na casa da escultora Zélia Salgado, em Ipanema, creio que em 1956. Eu havia lido, quando ainda vivia em São Luís, o seu romance "O Lustre", que me deixara impressionado pela atmosfera estranha e envolvente, mas a impressão que me causou sua figura de mulher foi outra: achei-a linda e perturbadora. Nos dias que se seguiram, não conseguia esquecer seus olhos oblíquos, seu rosto de loba com pômulos salientes.
Voltei a encontrá-la, pouco tempo depois, no "Jornal do Brasil", durante uma visita que fez à redação do "Suplemento Dominical". Conversamos e rimos, mas não voltamos a nos ver num espaço de uns dez anos. De fato, só voltei a encontrá-la logo após voltar do exílio, em 1977. Ela ligou para minha casa: queria entrevistar-me para a revista "Fatos e Fotos", para a qual colaborava naquela época.
Clarice já era então uma mulher de quase 60 anos, marcada por acidente que resultara em sérias queimaduras que lhe deixaram marcas na mão direita. Já quase nada tinha da jovialidade de antes, embora continuasse perturbadora em sua natural dramaticidade. Depois de ouvir dela algumas palavras carinhosas, decidi revelar-lhe como me fascinara em nosso primeiro encontro.
-Você era linda, tão linda que saí dali apaixonado.
-Quer dizer que eu "era" linda?
-E ainda é, apressei-me em afirmar..
Terminada a entrevista, despedimo-nos carinhosamente, mas no dia seguinte ela ligou de novo. Queria encontrar-me para conversar. Fui até sua casa, no Leme, e de lá fomos caminhamos até a Fiorentina, que ficava perto.
Lembro-me que Glauber Rocha, vendo-nos ali, veio sentar-se em nossa mesa e começou a elogiar o governo militar. Clarice me olhava para com espanto, sem entender. Ele, depois daquele discurso fora de propósito, mudou de mesa.
-Ele veio provocar você, disse Clarice. Com que intenção falou essas coisas?
-Glauber agora cismou de defender os milicos. É piração.
Depois dessa noite, voltei a vê-la num encontro que ela promoveu em sua casa com alguns amigos, entre os quais Fauzi Arap, José Rubem...
Foi a última vez que a vi. A roda-viva daqueles tempo me arrastou para longe dela, em meio a problemas de toda ordem, crises na família, filhos drogados, clínicas psiquiátricas. De repente, soube que ela havia sido internada num hospital em estado grave. Localizei o hospital, telefonei para o seu quarto e acertei com a pessoa que me atendeu ir visitá-la no dia seguinte. Mas, ao chegar à redação do jornal, antes de sair para a visita, a telefonista me passou um recado: "Clarice pede ao senhor que não vá vê-la no hospital. Deixe para visitá-la quando ela voltar para casa". E se ela não voltasse mais para casa? Dobrei o papel com o recado e guardei-o no bolso, desapontado.
Àquela noite, quando contei o ocorrido a minha mulher, ela explicou: "Clarice, vaidosa como era, não queria que você a visse no estado em que estava". Pode ser, mas, de qualquer forma, até hoje lamento não ter podido vê-la uma última vez.
Dois ou três dias depois do recado, ela morria. Ao sair do banho, pela manhã, alguém me informou: "Clarice Lispector morreu". De viagem marcada para São Paulo, entrei num táxi que me levou pela lagoa Rodrigo de Freitas. Não poderia ir a seu sepultamento. O táxi corria dentro de uma manhã luminosa, enquanto a brisa balançava alegremente os ramos das árvores. Clarice morrera e a natureza o ignorava. No avião, escrevi um poema falando nisso. Que mais poderia fazer?
Alguns meses atrás, quando aceitei fazer a curadoria da exposição sobre ela, no Museu da Língua Portuguesa, todas essas lembranças me acudiram. Ia ser bom voltar a pensar nela, reler seus livros, pois é neles e só neles que é possível reencontrá-la agora e nunca naquele saárico túmulo do Cemitério Israelita do Caju, aonde certo dia, sob sol escaldante, fui, com Cláudia Ahimsa, visitá-la. Não havia Clarice nenhuma sob aquela laje de pedra, sem flores. E não havia porque, de fato, o que Clarice efetivamente foi, o que fazia dela uma pessoa única e exasperada, era sua patética entrega ao insondável da existência -e a necessidade de escrever, de tentar incansavelmente dizer o indizível, mas certa de que, ao torná-lo dizível, o dissiparia.
Não obstante, isso era tudo o que valia a pena fazer na vida, conforme afirmou: "Quando não escrevo, estou morta".
Em compensação, quando a lemos, ressuscita.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

O que é científico? - Rubem Alves

Era uma vez um jovem que amava xadrez. Sua vocação era o xadrez. Jogar xadrez lhe dava grande prazer. Queria passar a vida jogando xadrez. Nada mais lhe interessava. Só lia livros de xadrez. Estudava as partidas dos grandes mestres. Só conversava sobre xadrez. Quando era apresentado a uma pessoa sua primeira pergunta era: Você joga xadrez? Se a pessoa dizia que não ele imediatamente se despedia. Tornou-se um grande mestre. Mas o seu sonho era ser campeão.
Derrotar o computador. Até mesmo quando andava jogava xadrez. Por vezes, aos pulos para frente. Outras vezes, passinhos na diagonal. De vez em quando, dois pulos para frente e um para o lado. As pessoas normais fugiam dele porque ele era um chato. Só falava sobre xadrez. Nada sabia sobre as coisas do mundo como pombas, beijos e sambas. Não conseguia ter namoradas porque seu único assunto era xadrez. Suas cartas de amor só falavam de bispos, torres e roques. Na verdade ele não queria namoradas.
Queria adversárias. Essas coisas como jogo de damas, jogos de baralho, jogo de peteca, jogo de namoro eram inexistentes no seu mundo. Inclusive, entrou para uma ordem religiosa. Eu viajei ao lado dele, de avião, de São Paulo para Belo Horizonte. Cabeça raspada.
Durante toda a viagem rezou o terço. Não prestei atenção mas suspeito que as contas do seu terço eram peões, cavalos e bispos. Sua metafísica era quadriculada. Deus é o rei. A rainha é nossa senhora. O adversário são as hostes do inferno.
As pessoas normais brincam com muitos jogos de linguagem: jogos de amor, jogos de poder, jogos de saber, jogos de prazer. jogos de fazer, jogos de brincar. Porque a vida não é uma coisa só. A vida é uma multidão de jogos acontecendo ao mesmo tempo, uns colidindo com os outros, das colisões surgindo faiscas. Uma cabeça ligada com a vida é um festival de jogos. E é isso que faz a inteligência. Mas o nosso heroi, coitado, era cabeça de um jogo só. Jogava o tal jogo de maneira fantástica. Especializou-se. Sabia tudo sobre o assunto. E, de fato, sabia tudo sobre o mundo do xadrez. Mas o preço que pagou é que perdeu tudo sobre o mundo da vida. Virou um computador ambulante, computador de um disquete só. Disquetes são linguagens. O corpo humano, muito mais inteligente que os computadores, é capaz de usar muitos disquetes ao mesmo tempo. Ele passa de um programa para outro sem pedir licença e sem pensar. Simplesmente pula, alta.
Inteligência é isso: a capacidade de pular de um programa para outro, de dançar muitas danças ao mesmo tempo. O humor se nutre desses pulos. O riso aparece no momento preciso em que a piada faz a inteligência pular de uma lógica para uma outra. Há a piada dos dois velhinhos que foram ao gerontologista que, depois de examiná-los, prescreveu uma dieta de comidas e remédios a ser seguida por duas semanas. Passadas as duas semanas, voltaram. O resultado deixou o médico estupefato. A velhinha estava linda: sorridente, saltitante, toda maquiada. O velhinho, um caco, trêmulo, pernas bambas, dentadura frouxa, apoiado na mulher. Como explicar isso, que uma mesma receita tivesse produzido resultados tão diferentes? Depois de muito investigar o médico atinou com o acontecido. "- Mas eu mandei o senhor comer avêia três vezes por dia e o senhor comeu avéia três vezes por dia?" O riso aparece no jogo de ambiguidade entre avêia e avéia. O nosso heroi nunca ria de piadas porque ele só conhecia a lógica do xadrez, e o riso não está previsto no xadrez. A inteligência do nosso heroi não sabia pular. Ela só marchava. Faz muitos anos, um filósofo chamado Herbert Marcuse escreveu um livro ao qual deu o título de O homem unidimensional . O homem unidimensional é o homem que se especializou numa única linguagem e vê o mundo somente através dela. Para ele o mundo é só aquilo que as redes da sua linguagem pegam. O resto é irreal.

A ciência é um jogo. Um jogo com suas regras precisas. Como o xadrez. No jogo do xadrez não se admite o uso das regras do jogo de damas. Nem do xadrez chinês. Ou truco. Uma vez escolhido um jogo e suas regras, todos os demais são excluidos. As regras do jogo da ciência definem uma linguagem. Elas definem, primeiro, as entidades que existem dentro dele. As entidades do jogo de xadrez são um tabuleiro quadriculado e as peças. As entidades que existem dentro do jogo lingüístico da ciência são, segundo Carnap, "coisas-físicas", isso é, entidades que podem ser ditas por meio de números. Esses são os objetos do léxico da ciência. Mas a linguagem define também uma sintaxe, isso é, a forma como as suas entidades se movem. Os movimentos das peças do xadrez são definidos com rigor. E assim também são definidos os movimentos das coisas físicas do jogo da ciência.
Kuhn, no seu livro Estrutura das Revoluções Científicas, diz que os cientistas fazem ciência pelos mesmos motivos que os jogadores de xadrez jogam xadrez: querem todos provar-se "grandes mestres".
Para se atingir o nível de "grande mestre" no xadrez ou na ciência é necessária uma dedicação total. Conselho ao cientista que pretende ser "grande mestre": lembre-se de que, enquanto você gasta tempo com literatura, poesia, namoro, em conversas no bar DALI, há sempre um japonês trabalhando no laboratório noite adentro . É possível que ele esteja pesquisando o mesmo problema que você. Se ele publicar os resultados da pesquisa antes de você, ele, e não você, será o "grande mestre."
O pretendente ao título de "grande mestre" deve se dedicar de corpo e alma ao jogo da ciência. O cientista que assim procede ficará com conhecimentos cada vez mais refinados na sua área de especialização: ele conhecerá cada vez mais de cada vez menos. Mas, à medida que o seu "software" de linguagem científica se expande, os outros "softwares" vão se atrofiando. Por inatividade. O cientista se transforma num "homem uni-dimensional": vista apurada para explorar a sua caverna, denominada "área de especialização", mas cego em relação a tudo o que não seja aquilo previsto pelo jogo da ciência. Sua linguagem é extremamente eficaz para capturar objetos físicos. Totalmente incapaz de capturar relações afetivas. Se não houvesse homens no mundo, se o mundo fosse constituido apenas de objetos, então a linguagem da ciência seria completa. Acontece que os seres humanos amam, riem, têm medo, esperanças, sentem a beleza, apaixonam-se por ideais. Meteoros são objetos físicos. Podem ser ditos com a linguagem da ciência. A ciência os estuda e examina a possibilidade de que, eventualmente, um deles venha a colidir com a terra.
Dizem, inclusive, que foi um evento assim que pôs fim aos dinossauros. A paixão dos homens pelos ideais não é um objeto físico. Não pode ser dita com a linguagem da ciência. No entanto, ela é um não-objeto que têm poder para se apossar dos homens que, por causa dela se tornam heróis ou vilões, fazem guerra e fazem paz. Mas um projeto de pesquisa sobre a paixão dos homens pelos idéias não é admissível na linguagem da ciência. Não não seria aceito para ser publicado numa revista científica indexada internacional. Não é científico.
A ciência é muito boa - dentro dos seus precisos limites. Quando transformada na única linguagem para se conhecer o mundo, entretanto, ela pode produzir dogmatismo, cegueira e, eventualmente, emburrecimento.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

O mal das religiões - ATEU - RICARDO BONALUME NETO

Era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones e estudou num colégio católico liberal. Por isso fiquei chateado ao ouvir John Lennon em "Imagine" cantar como seria bom o mundo sem religião. Demorou para cair a ficha. Aos poucos o adolescente começou a entender a história e o papel das religiões no mundo. Como elas causam guerras, reprimem a sexualidade, prejudicam o avanço da ciência. Inquisição, talebãs, criacionismo, neoevangélicos movidos a dinheiro dos pobres: a lista de barbaridades praticadas pelas religiões organizadas e por seus seguidores mais fanáticos é imensa.
Sobraria "deus" (com minúscula). Afinal, o ente "superior" não pode ser diretamente vinculado às bobagens feitas em seu nome. Mas para que serve deus? Desta vez John Lennon não me chateou quando cantou que "deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor". Ah, me dizem, quando você estiver muito doente, vai encontrar deus. Bem, ainda não aconteceu, nem quando estive internado com pneumonia. Fiquei num quarto com um colega com câncer no pulmão. Quando foi feito o teste para saber se tinha a doença, ele pegou o envelope das mãos do médico e correu para uma igreja para abri-lo ali. Não adiantou.
Para explicar o mundo, deus é desnecessário. Mesmo que a ciência nunca explique tudo, é melhor ser humilde e reconhecer limitações do que procurar uma explicação fácil e reconfortante: "Foi deus".

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Sou católico, apostólico, baiano - CANDOMBLÉ - NIZAN GUANAES

Sou devoto de Santo Antônio e de Nossa Senhora do Carmo. Entrei no candomblé, tardiamente, aos 20 e tantos anos. Fui consertar o telhado do Gantois, e o Gantois consertou minha vida. O candomblé não é religião. É culto aos antepassados, às forças da natureza. É moderno. Já era ecológico antes que a ecologia entrasse em voga. Não exclui opções sexuais. Ao contrário, acolhe. Os deuses do candomblé têm ira, inveja e raiva. Xangô é colérico. Oxum é ciumenta e chorosa. Ogum tem o pavio curto.
Não é muito chique ser do candomblé. Pelo menos na parte do país em que vivo. Como toda cultura vinda dos vencidos, é visto como desvio, coisa de gente desajustada ou artista. E confesso que isso, ao contrário de me afastar dele, sempre me instigou a caminhar contra o vento. Toda sexta-feira vejo o olhar jocoso com que algumas pessoas me olham vestido de branco.
O candomblé é o culto do bem. Tantas vezes confundido com feitiço. Se alguém usou esses poderes santos para o mal, é descaminho. E contra ele a força deve ter se voltado. O catolicismo não pode ser julgado a partir de padres pedófilos. E o candomblé não pode ser julgado a partir de pais-de-santo picaretas. Candomblé é magia. Aquela energia que a gente sente na Bahia vem dele. Aquela música, aquela sensualidade e aquela pimenta vêm dele. Sua Santidade, por ser padre e alemão, talvez não consiga assimilar tudo isso. Mas não posso negar o bem que mãe Cleusa me fez e que mãe Stella me faz. E o bem que elas fazem pelos pobres.
O candomblé sempre foi e continua pobre. Não tem catedrais, nem TVs, nem rádios. Não faz coleta de dinheiro. Ao contrário, as grandes mães-de-santo doam. Vivem franciscanamente. E nunca fizeram voto de pobreza. Porque os pobres não precisam disso.
Saúdo sua Santidade e peço a Xangô e a Oxum que guiem seus caminhos para que ele possa ser uma grande mãe ao longo de seu papado. Que, além de encíclicas e regras, ele nos dê colo e carinho. Que ele seja uma espécie de mãe Menininha global. Porque, ao fazer isso, honrará o trono de Pedro e terá cumprido, no fim de seu papado, seu papel no tempo e na história.

terça-feira, 8 de maio de 2007

Elaborando a condição judaica - Judaísmo - MOACYR SCLIAR

Diferente do que pensam os preconceituosos, o judaísmo está longe de ser uma coisa só, uma entidade monolítica (e conspiratória). A aproximação ao judaísmo varia amplamente: pode ser religiosa, pode ser tradicional, pode ser cultural. Nunca recusei minha condição judaica. Nascido e criado no Bom Fim, o bairro dos imigrantes judeus de Porto Alegre, desde muito cedo tive uma intensa vivência comunitária: ouvia falar iídiche, comia pratos da culinária judaica e, sobretudo, tive uma mãe judia daquelas de livro, superprotetora e alimentadora.
Mas isso não impediu que surgisse em mim a consciência da diferença e do estigma; a certa altura concluí que estava irremediavelmente condenado ao Inferno, onde queimaria por toda a eternidade. Muitos anos de vida (e muitos anos de análise) ajudaram a superar este e outros conflitos; hoje tenho orgulho do meu judaísmo.
Não sou religioso, mas a condição judaica vincula-me a uma rica cultura, exemplificada por nomes como os de Marx, Freud, Kafka, Benjamin, Bashevis Singer, Einstein e Chagall, que marcaram nosso mundo. E, conflitos à parte, o Estado de Israel é um exemplo de dinamismo e de progresso. Um provérbio em iídiche diz que "é duro ser judeu". Verdade. Mas é gratificante também.

domingo, 6 de maio de 2007

Apagão celular - ELIANE CANTANHÊDE

Só para citar dois pólos: os celulares são campeões de reclamação no Procon tanto do rico São Paulo quanto do pobre Sergipe.
Antes de optar. consulte a lista das mais denunciadas. E fuja!
As reclamações vão desde problemas nos aparelhos (defeitos, falta de peças...) até a prestação de serviço pelas operadoras, que vai de mal a pior. Inclusive porque elas dão de ombros para o que seriam os controles de Estado, como a Anatel, agência reguladora, e os próprios Procons. É como se estivessem acima das instâncias de defesa do consumidor -leia-se: contribuinte.
As suspeitas/acusações são de jeitinhos para cobranças indevidas, exorbitantes. As contas não chegam em domicílio. Se você tenta por telefone, passa por verdadeiras sessões de tortura. Se busca pessoalmente nas lojas, só contêm o total, sem detalhar os gastos.
Para ter a conta completa, é preciso senha, uma espera que pode durar duas, três horas e ainda muita paciência para enfrentar a falta de paciência do funcionário. Sabe como é: se a empresa está acima do Estado, o funcionário está acima de você. Simples assim. No final, aparece uma conta milionária.
Você pode fazer uma, duas, dez reclamações protocoladas na empresa, durante meses a fio, indo de um ano a outro, e nada. Aí, você recorre à Anatel e descobre que é preciso uma Anatel da Anatel, que não resolve nada. Aí, você cai no Procon, que resolve para uns, não para outros. Aí, só resta a Justiça -e você sabe como a Justiça é.
Depois de cancelada a conta, pior ainda: a fatura do "resíduo" não chega, seu número não está mais no sistema, o débito vira juros e correção e você pode gritar, se esgoelar, enfartar, mas não vai conseguir... se desvincular da empresa. O cancelamento foi em março? Prepare-se para ficar pagando "juros" até junho, julho...
Kafkiano? Que nada. Kafka é fichinha perto disso.
PS - Saio de férias. Até a volta!

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Comandantes comandados - CLÓVIS ROSSI

Uma coisa é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciar, faz já quatro anos, a iminência do espetáculo do crescimento sem que o show jamais tenha sido encenado.
Outra coisa, bem mais grave, é seu colega George Walker Bush, também faz quatro anos, falar em "missão cumprida", em relação à Guerra do Iraque, apenas para que, no quarto aniversário do anúncio, o líder da maioria democrata, Harry Reid, diga o contrário: "A guerra está perdida". Estabelecida a diferença, passemos às semelhanças.
Semelhança 1 - Governos mentem. Faz muito tempo que o fazem, mas não deixa de ser surpreendente que continuem a fazê-lo -e até aumentem o tamanho das mentiras- em plena era da informação, que, supostamente, tudo devassa.
Semelhança 2 (e mais grave) -Quando não mentem por iniciativa própria, o fazem porque seus assessores mentem para eles. Caso de Lula: leigo em economia, jamais se animaria a anunciar o espetáculo do crescimento se algum "aspone" de grosso calibre não lhe tivesse soprado algo a respeito.
No caso de Bush, o livro de George Tenet, ex-chefe da CIA na época dos atentados do 11 de Setembro e da Guerra do Iraque, mostra um formidável círculo de assessores contando ao chefe mentiras sobre o vínculo entre a Al Qaeda e Saddam Hussein, para não falar das tais armas de destruição em massa.
Parece haver aí uma conclusão inescapável: as máquinas governamentais, ao menos em países grandes (ricos ou emergentes, não importa), escaparam ao controle dos eleitores e, pior ainda, de seus próprios chefes. Como mesmo os mais aplicados não conseguem saber de tudo -seja sobre a economia interna, seja sobre a situação em outro país-, não governam de fato. Reagem a comandos. Pode até dar certo, mas o risco é formidável, como o demonstra o Iraque.

domingo, 29 de abril de 2007

PROCURA-SE PATROA COM EXPERIÊNCIA - MARIO PRATA

DEPOIS DESTE escandaloso crime, onde uma patroa matou o filho a porradas e foi corajosamente denunciada pela empregada, que ainda tentou salvar o garotinho, acho que devemos rever a contratação de tal serviçal. Seria mais ou menos assim:
A patroa vai humildemente até a casa da futura empregada, bate na porta e é recebida

Empregada - A senhora tem experiência? Há quanto tempo é patroa?
Patroa - Desde mocinha, aprendi com a minha mãe.
Empregada - Quanto tempo a senhora ficou com a última empregada?
Patroa - Mais de cinco anos. Mas eu casei, engravidei...
Empregada - Sei, sei... Quantos filhos a senhora tem?
Patroa - Três.
Empregada - Pretende ter mais?
Patroa - Não, não. Pode ficar sossegada.
Empregada - A senhora cozinha bem, mantém a casa limpinha?
Patroa - Um primor.
Empregada - A senhora costuma tirar férias quantas vezes por ano?
Patroa - Aí depende do meu marido.
Empregada - Pois comigo vai ser apenas 20 dias corridos por ano.
Patroa - Para mim está bem.
Empregada - Outra coisa. A senhora costuma dormir fora, chegar tarde?
Patroa - Uma vez ou outra. Fim de semana, né?
Empregada - Pois comigo vai ter apenas uma tarde de domingo livre a cada quinze dias.
Patroa - Sim, senhora.
Empregada - Não quero que receba visitas no quarto. Quando vier alguém, um parente, por exemplo, receba a pessoa no portãozinho. Do lado de fora.
Patroa - Claro.
Empregada - Não quero saber de namoros no telefone, e interurbano, nem pensar, está claro?
Patroa - Sim, senhora.
Empregada - A senhora tem uniforme de patroa? Está novo, não tem remendos?
Patroa - Novinho em folha.
Empregada - Ótimo. No período que estivermos trabalhando juntas, nada de engravidar. Nada de namorar PMs e jogadores de futebol.
Patroa - Claro.
Empregada - O INPS corre por conta da senhora. Não tem nem décimo-terceiro e nem férias pagas. A senhora trate de economizar.
Patroa - Não gasto quase nada, dona.
Empregada - Você é católica?
Patroa - Praticante.
Empregada - Pois eu sou da Igreja Universal do Reino de Deus. É melhor a senhora se converter, para evitar discussões.
Patroa - Claro, sempre gostei muito do bispo Macedo.
Empregada - Quando eu sair, de noite, você fica com as crianças, e nada de bater com a cabecinha deles nos ladrilhos, viu?
Patroa - De jeito nenhum. Adoro criancinhas.
Empregada - Ótimo. Vamos nos dar bem. E quando eu voltar, quero a casa toda arrumada e a comida no forno.
Patroa - Temos microondas.
Empregada - Ótimo. O seu marido faz o quê?
Patroa - É médico.
Empregada - Quanto ele está cobrando a consulta?
Patroa - Cem dólares.
Empregada - E quanto vai ser o meu salário?
Patroa - Um salário mínimo. Mais ou menos sessenta dólares.
Empregada - Quer dizer que o seu marido ganha cem dólares por hora e a senhora quer me pagar sessenta dólares por mês?
Patroa - Mais comida, casa e roupa lavada. É pegar ou largar.
A empregada abre a porta para a patroa ir embora. Coloca a cabeça para fora:
Empregada - Por favor, a próxima.

terça-feira, 24 de abril de 2007

O sexo e a pulseira eletrônica - MOACYR SCLIAR

Reino Unido quer controlar idosos com pulseiras eletrônicas. O ministro britânico da Ciência, Malcolm Wicks, quer obrigar todos os idosos do Reino Unido a usarem uma pulseira magnética para localizá-los a qualquer hora. De acordo com o ministro, uma nova tecnologia via satélite permite que as famílias saibam onde seus parentes estão. Em uma entrevista ao jornal inglês "Daily Mirror", Wicks afirmou que a iniciativa foi lançada como conseqüência das preocupações de muitos britânicos sobre o paradeiro dos idosos e sobre sua segurança.
Folha Online

D EPOIS DE muitas discussões, o uso da pulseira eletrônica como localizador de pessoas idosas foi afinal instituído por lei. Não se tratava de medida impositiva: os idosos poderiam tomar uma decisão a respeito, depois de consultar seus familiares e seus médicos. Ao final de alguns meses, a maioria optou pela pulseira. Às vezes em meio a discussões e controvérsias. Foi o caso de um casal que já tinha celebrado o qüinquagésimo aniversário de matrimônio. Celebrado é modo de dizer, porque, na verdade não viviam muito bem. Sobretudo por causa do homem, que tinha um gênio muito difícil, e que se queixava amargamente da mulher. Não foi diferente quando ela propôs que ambos adotassem a pulseira eletrônica. Ele, particularmente, precisava desse dispositivo porque não raro ficava desorientado; mas, justamente porque a proposta partia da esposa, ele de início a recusou. Disse que a pulseira na verdade era uma algema, que a mulher queria controlá-lo, queria prendê-lo. Essa era apenas uma das queixas que tinha em relação à esposa. Temperamento fogoso, sentia-se em condições de praticar sexo quase da mesma forma com que o fizera na juventude. Ela, porém, não partilhava desse ardor. Daí as brigas. Curiosamente, a pulseira proporcionou uma solução para o problema. Finalmente ele concordou em usá-la e aí, a partir de um sistema de satélite, a esposa passou a rastreá-lo. O que era necessário, porque ele saía todos os dias e às vezes só voltava à noite. Agora, ela podia saber exatamente onde o esposo se encontrava. E isto resultou num choque. Ele freqüentava lugares, para ela, francamente misteriosos. De posse dos endereços, tratou de descobrir que lugares eram aqueles. Uma agência de detetives forneceu-lhe os dados. Chocantes: eram bordéis. A cada dia ele ia a um bordel diferente. E agora? O que fazer? Pensando sobre o assunto, ela acabou concluindo que, afinal, era em grande parte responsável pelo que estava acontecendo. Se tratasse o marido melhor, caso se aproximasse dele como a mulher sedutora que um dia fora, ele talvez não precisasse ir a bordéis. A partir de então, ela mudou. De alguma maneira, recuperou sua feminilidade. E hoje vivem felizes, na cama e fora dela. E o monitoramento da pulseira mostra que ele só freqüenta lugares inocentes: cafés, centros culturais. O que ela não sabe é que, na verdade, ele nunca foi a bordéis. Pagava a um antigo empregado para fazê-lo. E com isso, conseguira criar a imagem de um campeão do sexo. Pulseiras eletrônicas não são estimulantes sexuais. Mas, com um pouco de imaginação, podem perfeitamente cumprir essa função.

domingo, 22 de abril de 2007

Machismo - Carlos Heitor Cony

O machismo saiu de moda. As mulheres não usam espartilhos, os homens não usam ceroulas. Entretanto o machismo produziu, ao longo dos séculos, um arsenal de argumentos que continuam dando caldo. Relendo o filósofo Schopenhauer, espantei-me com os trechos que havia sublinhado. Transcreverei alguns. Não os endosso. São conceitos de outra época. Aí estão eles:
"O simples aspecto da mulher revela que não é destinada nem aos grandes trabalhos intelectuais ou materiais. Conservam-se a vida toda uma espécie de intermediárias entre a criança e o homem. A natureza recusando-lhes a força, deu-lhes a astúcia para lhes proteger a fraqueza: de onde resultam a instintiva velhacaria e a invencível tendência à simulação do sexo feminino".
"O leão tem os dentes e as garras. O elefante e o javali, as presas; o polvo, a titã; a cobra, o veneno. A natureza deu à mulher para se defender apenas a dissimulação. Esta faculdade supre a força que o homem tira do vigor de seus músculos e de sua inteligência".
"Os homens entre si são naturalmente indiferentes. As mulheres são, por índole, inimigas. Isso provém da rivalidade que, no homem, só se destina aos da mesma profissão. Nas mulheres, todas elas são rivais umas das outras, pois todas têm a mesma profissão e buscam o mesmo fim".
Elas são até mais aptas do que os homens para aprender o lado técnico das artes, e mais constantes e dedicadas no aprendizado. Taí, em linhas gerais, o pensamento de Schopenhauer. Discordo dele: nem o homem nem a mulher foram feitos para produzir obras definitivas no campo das artes ou do consumo mercadológico. Somos todos da mesma massa. De minha parte, folgo que haja mulheres, diferentes de mim na cabeça, no tronco e, principalmente, nos membros.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Sobre rankings escolares - Rosely Sayão

Qual a utilidade de um ranking de escolas? Seja fundamentado no numero de alunos que passam no vestibular de determinadas faculdades ou no resultado obtido no Enem, hoje temos várias listas de classificação que destacam nos primeiros lugares algumas escolas e jogam lá para o meio ou para o final da fila tantas outras. Tais listas não têm utilidade alguma e dizem muito pouco – quase nada, para falar a verdade – sobre o valor de uma escola ou de seu modo de funcionar. Mesmo assim, elas são usadas para avaliar a qualidade de ensino praticado, seja a instituição pública ou privada.

Uma conseqüência importante que essas listas provocam, tanto para as escolas que se classificam no topo da lista quanto para as demais, tem a ver primeiramente com elas mesmas. As que se situam no topo das listas acreditam que o resultado obtido é a prova de que estão no caminho certo e que, portanto, não precisam rever seus métodos tampouco suas práticas. As demais ficam pressionadas a atingir resultados melhores e passam a procurar caminhos que lhes permitam atingir tal meta. Ora, o trabalho que uma escola realiza não pode ser reduzido ao êxito escolar de seus alunos avaliado dessa maneira.

É que a instituição escolar não funciona como uma empresa, que precisa ser eficiente a qualquer custo. Como uma estrutura social importante, ela tem finalidades bem mais preciosas que não podem ser medidas de imediato, mas só uma ou duas décadas após o aluno sair da escola. É que, além da transmissão do saber – que exige disciplina, método, precisão e rigor, por exemplo, e isso também precisa ser ensinado – a escola tem o objetivo de ensinar o exercício da cidadania e promover a construção da autonomia. E é preciso lembrar que essas atribuições não são feitas separadamente, de modo algum!

Formar o futuro cidadão supõe ensinar e praticar valores coletivos e democráticos, ensinar a viver em grupos heterogêneos, a conviver com a diversidade, a superar preconceitos e estereótipos, a não restringir a vida social apenas a grupos de interesses convenientes, a buscar o bem comum e, principalmente, a usar o saber adquirido e atualizado constantemente em benefício de todos e não apenas próprio ou de poucos. É por isso que só sabemos o efeito que uma escola provocou quando seus alunos efetivamente se tornam cidadãos.

Desse modo, pouco importa as escolas de ensino fundamental e médio que freqüentaram os alunos que entraram em determinadas faculdades, por exemplo. Isso mostra apenas que algumas escolas instruem bem seus alunos em relação a determinadas disciplinas do conhecimento e execução de tipos de provas de avaliação. Mas, e as outras atribuições?

Queremos saber algo mais significativo a respeito do trabalho de uma escola? Vamos procurar saber em que trabalham e como anda a vida profissional dos alunos que lá se formaram uma década atrás, por exemplo. Será que trabalham apenas em busca de uma vida pessoal confortável, ou querem mais do que isso? Quando vemos uma atuação indigna de um político, seria interessante saber qual escola ele freqüentou no início da vida, não é mesmo? Afinal, é na escola que se aprende a viver politicamente e é na maturidade que a formação adquirida na escola ganha oportunidade de se expressar com consistência. Mas, não nos esqueçamos da liberdade na vida adulta: por melhor que tenha sido a formação escolar básica de uma pessoa, ao ganhar autonomia ela faz suas próprias escolhas.

O fato é que são raras as escolas de ensino fundamental e médio que têm dado conta de suas três importantes funções com seus alunos e não há ranking algum que consiga ocultar esse fato e essa questão é um problema de todos nós e não apenas de quem tem filhos em idade escolar ou trabalha em escola. Afinal, nosso futuro terá as marcas desse tipo de formação.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Peça seu autor aqui

Se você ainda não encontrou nenhum conto ou crônica do seu autor preferido aqui no blog, pode pedir nesse espaço, se você quiser que sua crônica apareça no nosso espaço é só entrar em contato.

Racismo – Luis Fernando Veríssimo

Preconceito racial e discriminação racial são duas coisas diferentes.
O preconceito é um sentimento, fruto de condicionamento cultural ou de uma deformação mental, mas sempre incorrigível. Não se legisla sobre sentimentos, não se muda um habito de pensamento ou uma convicção herdada por decreto. Já a descriminação racial é o preconceito determinando atitudes, políticas, oportunidades e direitos, o convívio social e o econômico. Não se pode coagir ninguém a gostar de quem não gosta, mas qualquer sociedade democrática, para desmentir o nome, deve combater a descriminação por todos os meios – inclusive a coação.
Não concordo com quem diz que uma política de cotas para negros no estudo superior é discriminação. É coação, certo, mais para tentar corrigir um dos desequilíbrios que persistem na sociedade brasileira, o que reflete na educação a desigualdade de oportunidades de brancos e negros em todos os setores, mal disfarçada pela velha conversa da harmonia racial tão nossa. As cotas seriam irrealistas? Melhor igualdade artificial do que igualdade nenhuma.
Agora mesmo caíram em cima de quem disse – numa frase obviamente arrancada do contexto – que racismo de negro contra branco é justificável. Nenhum racismo é justificável, mas o ressentimento dos negros é. Construiu-se durante todos os anos em que a última nação do mundo a acabar com a escravatura continuou na prática o que o tinha abolido no papel. Não se esperava que o preconceito acabasse com o decreto da abolição, mas mais de 100 anos deveriam ter sido mais do que suficientes para que a discriminação diminuísse. Não diminuiu.
Igualar racismo de negro com racismo de branco não resiste a um teste elementar. O negro pode dizer – distinguindo com nitidez preconceito de descriminação – “Não precisa me amar, só me dê meus direitos”. Qual a frase mais próxima disto que um branco poderia dizer, sem provocar risos? “Não precisa me amar, só tenha paciência”? “Me ame, apesar de tudo”?. Pouco convincente.
É uma questão que vai e vem, como as marés. A velha oposição, na seleção brasileira, do time do povo e o time do técnico. Quando as coisas vão bem (Brasil 4, Chile 0) não há discussão, quando as coisas vão mal (Brasil ali ali, Gana 0) volta a questão. O povo quer os melhores sempre no time. Isto se repete há anos. Mudam os técnicos, mudam os melhores, muda, em boa parte o povo, e a questão continua indo e vindo. Como as marés.

sábado, 14 de abril de 2007

Um amor, uma cabana - Ana Miranda

Nossos pais diziam que para nos tornar seres completos era preciso escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Meu pai, que era engenheiro, acrescentava: construir uma casa. Escrevi livros, até demais, tenho um filho e plantei uma árvore, no jardim da casa onde cresci, uma muda de pau-rosa, ou flor-do-paraíso, que havia sido esquecida ao lado de uma cova estreita e funda, uma muda frágil, com poucas folhas, mais alta do que a menininha que a salvou. A muda cresceu, transformou-se em um majestoso flamboyant, coberto de flores vermelhas.

Mas nunca construí uma casa. Sonho com isso. Gostaria de construir uma casa de taipa, com as próprias mãos, amassar o barro, atirar o barro nos enxaiméis e fasquias de madeira. Não se trata de uma idiossincrasia, nem de um gesto poético, muito menos uma visão religiosa. A taipa é um material apaixonante. Tem uma nobreza histórica. As reforçadas casas e igrejas coloniais brasileiras foram feitas de taipa de pilão, há ainda hoje na Alemanha casas em taipa construídas no século 13, a própria muralha da China, símbolo da solidez, é taipa. A taipa tem mais de 9.000 anos, serviu a construções no Egito, na Mesopotâmia.

Um amigo meu, arquiteto, projetou e construiu belíssimas casas de taipa. Ele se chama Cydno da Silveira e o conheci em Brasília, poucos anos depois de plantar meu flamboyant. Cydno estudava na UnB quando, observando residências rurais, surpreendeu-se com a quantidade de casas de taipa, feitas de maneira intuitiva, quase como as abelhas fazem suas colméias. Nunca tinha ouvido falar naquilo em seu curso, e percebeu o quanto era elitista o ensino de arquitetura. Fotografou as casas de taipa todas que encontrava. Ele se formou, passou a trabalhar com as técnicas industriais, como concreto armado, mas nunca esqueceu a taipa. Deu-se conta de que não sabia construir da maneira mais rudimentar e resolveu aprender. Estudou durante anos a técnica. Descobriu taipas diversas, como a de pedra, usada no Piauí, a de madeira com bolas de barro, vista no Maranhão, a taipa de carnaúba, a taipa mista de moldura de tijolos, a taipa feita com sobras de madeira e sucata. Descobriu a maleabilidade incrível do barro, novas estruturas, novos dimensionamentos do espaço e imensas possibilidades de melhoria na técnica tradicional. Estudou a combinação com elementos da cultura industrial, mas sem descaracterizar a antiga construção de estuque.

A casa de taipa nasce do chão, vem da natureza, é construída com o material que está ali, a terra e as árvores e tem uma grande contribuição a dar a um país que não oferece moradia para todos, como o Brasil. O projeto de casas populares, que Cydno afinal desenvolveu, ensina o homem a construir sua própria casa e a cuidar dela. Tem o sentido de manter viva a sabedoria popular da taipa. Está sendo feita uma experiência na cidade de Bayeux, Paraíba, para treinamento de pessoas no projeto, construção, melhoria e restauração de edificações em taipa de pau-a-pique. Não recebendo a casa pronta, mas construindo-a, o dono toma por ela mais amor. Se for privado de sua terra, ele saberá construir uma nova habitação. O saber lhe pode servir como meio de vida, e a profissão tem um nome: taipeiro.

A casa de taipa é uma grande alternativa para a habitação no meio rural e nas periferias urbanas. Típica das populações mais pobres, é uma forma de independência, uma estratégia milenar de abrigo, preservada nos sertões brasileiros especialmente pelas mulheres. O sistema de autoconstrução elimina a aquisição de material, o transporte, o crédito, elimina o BNH e o processo industrial de construção, permite o mutirão e, principalmente, educa. É rápida a construção, usa-se mão-de-obra não qualificada, e é um instrumento para a posse imediata da terra. Permite uma construção tanto de caráter provisório quanto perene e a técnica pode ser levada a lugares onde não chega o material industrializado. Uma simples caiação evita a umidade e basta fechar as frestas onde o barbeiro gosta de fazer seu ninho. Integra a família, as mulheres e as crianças trabalham na construção e integra o grupo na sociedade quando em regime de mutirão. Apesar de tudo isso é completamente ignorada pelos meios administrativos, considerada subabitação, não há nem mesmo linha de crédito nos órgãos do governo para casa de taipa. Marcos Freire, antes de morrer, estava tratando de corrigir esse lapso. Nas esferas “civilizadas” há dificuldade em compreender a taipa. Não há legislação nem a favor nem contra. Quando da construção de Carajás, Cydno realizou um projeto de moradias em taipa de pau-a-pique para os empregados, utilizando o fartíssimo material do lugar. Seu projeto não foi aceito e os tijolos, o cimento e o ferro viajaram de avião até Carajás.

Na taipa não há desperdício de material e nem agressão ecológica, a madeira usada nas estruturas é em quantidade cinco vezes menor do que a necessária na queima de tijolos para uma parede das mesmas dimensões. “A tomada de consciência ecológica, surgida como uma ponte de luz no extremo mais estreito do túnel da crise de energia, vai servindo para provar-nos que nem sempre o habitat humano está condenado a ser feito de concreto, aço e vidro. Assim, quando tudo em arquitetura parecia dirigir-se para uma negação sempre maior da natureza que volta a oferecer uma saída diante das agruras da crise. E o faz com aquilo que lhe é primeiro e essencial, a terra, o elemento mais fecundo de tudo o que nos cerca”, escreveu o arquiteto Roberto Pontual.

Quando, nos anos 1930, Lúcio Costa projetou uma vila operária, em Monlevade, toda em taipa de pau-a-pique, escreveu: “...faz mesmo parte da terra, como formigueiro, figueira-brava e pé-de-milho – é o chão que continua... Mas justamente por isso, por ser coisa legítima da terra, tem para nós, arquitetos, uma significação respeitável e digna, enquanto que o pseudomissões, ‘normando ou colonial’, ao lado, não passa de um arremedo sem compostura”. E aconselha: devia ser adotada para casas de verão e construções econômicas de um modo geral. É uma técnica muito mais barata, atende aqueles casais remediados que desejam uma casinha de campo. O projeto de Lúcio Costa, claro, não foi aceito pela Belgo Mineira.

O Cydno vai projetar a minha casa de taipa. Vou querer na casa uma lareira, um fogão a lenha e uma vassoura daquelas de gravetos. Uma árvore frondosa por perto, pode ser flamboyant, um gramado na sombra para piquenique, contemplação ou leitura. Também dizia meu pai, nas coisas mais simples está o sentido da vida.