domingo, 21 de setembro de 2008

Sabor de infância - ROSELY SAYÃO

Recentemente, li um artigo do chef Massimo Bottura -que trabalha e reside em Módena, Itália- em que ele diz que, para criar seus pratos, recorre ao banco de memórias dos sabores de sua infância. Ele afirma que as novidades da comida de vanguarda ainda não são para todos e que a melhor atitude para permitir sua apreciação é despertar a curiosidade das pessoas desde a infância. E, diz ele, nisso os jardins-de-infância de Módena são um exemplo, já que oferecem um menu variado de comida italiana e internacional aos alunos.

Essa região da Itália, chamada Emilia-Romagna, é rica não só em gastronomia, mas também em educação. É em Reggio Emília, cidade vizinha a Módena, que está o que é tido como o melhor projeto em educação infantil do mundo.
Estive lá e me deliciei com a preparação do almoço das crianças. Elas mesmas colocam a mesa, tuteladas pelos adultos, é claro. E sabem preparar a mesa até para as situações mais formais. Na hora do almoço, divertem-se, compartilham, experimentam quase tudo sem fazer drama. É que alimentação, como disse o chef italiano, "não é matemática, é emoção".
Já acompanhei a hora do lanche na educação infantil em várias escolas de São Paulo. As lancheiras estão sempre recheadas de produtos industrializados. A quantidade de crianças que leva um lanche preparado carinhosamente em casa é mínima. E não me refiro aqui à questão nutricional, e sim ao aconchego que pode significar a alimentação para a criança.
É a mãe que dá o melhor alimento ao filho quando ele nasce: o leite materno. E, quando o bebê é alimentado, não é só a fome do estômago que é saciada: é também a de carinho. É assim que nasce a sensação de prazer, e não só a de satisfação de uma necessidade, a alimentar.
É esse o modelo que poderia ser mantido à medida que a criança cresce, mas parece que, no mundo atual, a alimentação se transformou em consumo apenas ou, então, em questão nutricional. E dá-lhe comida balanceada ou industrializada!
Não vale dizer que hoje os pais não têm tempo para preparar o lanche do filho, já que essa tarefa demanda um mínimo de tempo, mas muito de dedicação. E é nessas situações simples que os pais podem expressar sua afetividade. Preparar um lanche inusitado ou um almoço acompanhados pelos filhos são situações que vão construir a memória de sabores e afetos da criança. Essa mesma memória que o chef italiano usa para criar seus pratos.
Muitos pais que preferem ir a restaurantes com os filhos nos fins de semana o fazem por considerarem trabalhoso fazer comida em casa. E não é trabalhoso ir ao restaurante? Certamente é. Envolver os filhos nas delícias da transformação de alimentos em comida gostosa para ser compartilhada é simples e fácil: basta ter coragem e disponibilidade. O resultado é visível: as crianças ficam bem mais tranqüilas e felizes.
Gastronomia e educação têm muito em comum: ambas exigem paciência e persistência, dedicação e disponibilidade, rigor, atenção aos detalhes e respeito à tradição, trazendo-a ao tempo presente.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Lembrança e esquecimento - Dulce Critelli

"Como é antigo o passado recente!" Gostaria que a frase fosse minha, mas ela é de Nelson Rodrigues numa crônica de "A Menina sem Estrela".
Também fico perplexa com esse fenômeno rápido e turbulento que é o tempo da vida. Não são poucas as vezes em que me volto para algum acontecimento acreditando que ele ainda é atual e descubro que ele faz parte do passado para outros. Um exemplo é quando, em sala de aula, refiro-me a eventos que se passaram nos anos 70 e meus alunos me olham como se eu falasse da Idade Média... E eu nem contei para eles que andei de bonde!
A distância entre nós não é apenas uma questão de gerações. Eles nasceram em um mundo já transformado pela tecnologia e pela informática. Uma transformação que começou nos anos 50 e que não nos trouxe somente mais eletrodomésticos e aparelhos digitais. Ela instalou uma transformação radical do nosso modo de vida.
Mudou o mundo e mudou o jeito de viver. Mudou o jeito de namorar, de vestir, de procurar emprego, de andar na rua e de se locomover pela cidade. Mudou o corpo. Mudou o jeito de escrever, de estudar, de morar e de se divertir. Mudou o valor da vida, do dinheiro e das pessoas...
Outros tempos. E, quando um jeito de viver muda, ele não tem volta. Não se pode ter a experiência dele nunca mais. Por isso, meus alunos e eu só podemos compartilhar o tempo atual. Não podemos compartilhar um tempo que, para eles, é passado, mas, para mim, ainda é presente.
Os fatos de 30 anos atrás não são passado na minha vida. Para mim, meu passado não passou e minha história não envelhece. Minha memória pode alcançar os acontecimentos que vivi a qualquer momento, e posso revivê-los como se ocorressem agora. Mas, se eu os narrar, quem me ouve não pode, como eu, vivenciá-los. Por isso, para meus alunos, são contos o que para mim é vida.
Mas é assim que corre o rio da vida dos homens, transformando em palavras o que hoje é ação. Se não forem narrados, os acontecimentos e os nossos feitos passam sem deixar rastros. Faladas ou escritas, são as palavras que salvam o já vivido e o conservam entre nós. Salvam os feitos e os acontecimentos da sua total desintegração no esquecimento.
A memória do já vivido e a sua narração numa história é o que possibilita a construção da História e das nossas histórias pessoais. Só os feitos e os acontecimentos narrados em histórias são capazes de salvaguardar nossa existência e nossa identidade.
Só conservados pela lembrança é que os feitos e os acontecimentos podem entrar no tempo e fazer parte de um passado. Recente ou antigo.

domingo, 7 de setembro de 2008

Casal moderno - FERREIRA GULLAR

OS DOIS namoram faz tempo, gostam-se, curtem-se, mas estão sempre atritados. Sempre, não digo, mas com freqüência. Não moram juntos, e talvez esteja aí a causa dos atritos. Não morar junto tem vantagens e desvantagens; uma das vantagens é parecer que continuam namorados, em vez de casados, não ter que aturar os achaques do outro a toda hora nem desgastar o mistério da relação que a vida em comum quase sempre extingue.
Isso sem falar na relativa autonomia de que ambos gozam para sair, fazer amizades novas, enfim, manter vida própria, como na época de solteiros. A principal desvantagem, para cada um deles, é exatamente o excesso de autonomia do parceiro, que anda não se sabe por onde nem com quem. Isso sem falar na tristeza -que bate em certas noites- de estar cada um sozinho em sua cama e na solidão do fim de semana, se, por algum motivo, um dos dois não está disponível.
Acresce o fato de que as pessoas não são iguais, ainda que tenham muitas afinidades, como é o caso deste nosso casal de namorados. São afins, mas ele resiste menos à solidão, enquanto ela adora ficar sozinha, dias inteiros, imaginando histórias e situações. Se espia o pátio interno do edifício e vê uma menina à janela, começa a imaginar como será a vida dela, que sonhos alimenta... Ou sai à toa pela rua, entra num shopping e fica perambulando de loja em loja, sem nada comprar.
Enquanto isso, ele, terminado o trabalho do dia, não sabe o que fazer. Liga a televisão, mas nada de novelas, que ele odeia; futebol, só se for jogo de seu time ou da seleção; tênis ainda suporta, mas não é uma coisa que lhe encha a vida; às vezes, enche-lhe a paciência.
E ela, sua namorada, que andará fazendo àquela hora? Pensa em telefonar-lhe, mas hesita, não vale a pena, ela não atenderá. Pois é, essa é uma característica dela: quase nunca atender os telefonemas, para fugir dos parentes.
Ele é cordato e paciente, procura aceitar as idiossincrasias da namorada, mas, é claro, paciência tem limites. E foi no último fim de semana que sua paciência atingiu o limite, depois de quase 15 dias sem se encontrarem, devido a uma sucessão de empecilhos.
Na quarta-feira, ele conseguiu falar com ela, que prometeu encontrar-se com ele na quinta. Mas, na quinta, ligou de manhã para cancelar o encontro porque estava indisposta. Ele ouviu aquilo mortificado. "Será que a gente não se vê mais?", perguntou. Ela prometeu que, no fim de semana, iriam ao cinema. "Sim, mas em que dia?" "A gente acerta", disse ela, "fica frio, não me pressiona, certo?"
Certo, mas nem tanto. No dia seguinte, sexta-feira, ela não telefonou. Depois de muito esperar, ele ligou, e ninguém atendeu. À noite, ligou de novo, nada. Bem, ela disse que seria no fim de semana, pode ser amanhã, sábado, mas não custava nada ter ligado. Foi se deitar, inquieto e ressabiado. Quase dormindo, ouviu soar o telefone, foi correndo atender, era engano. Amanhã, ela liga, na certa...
Mal acordou, disse a si mesmo: espero que ela ligue hoje, sábado, se não for para irmos hoje ao cinema, ao menos para acertar a ida amanhã. Ocupou-se como pôde pela manhã, evitando a expectativa. À hora do almoço é que ela costuma ligar, mas não ligou. Ele começou a se afligir: duas horas, duas e meia, e nada. Decidiu ligar: ninguém atendeu. Mal acreditava naquilo: por que ela não atende ao telefone? Ao ver que já passava das três, perdeu as esperanças. Não telefonaria mais.
Abatido e desapontado, decidiu fazer alguma coisa, sair, andar pela rua, mas mudou de idéia: levou o carro para pôr gasolina e, depois, resolveu ir até o centro ver uma exposição de arte. Às seis horas, estava em casa de novo, mas com uma decisão tomada: não telefonaria para ela nem atenderia seus telefonemas aquela noite, pois certamente telefonaria. Sentou-se no divã, ligou a televisão e ficou vendo um filme de Woody Allen que já vira outras vezes. "Se ela telefonar, não atendo de jeito nenhum", garantiu ele.
E, de fato, uma hora depois, o telefone tocou, e ele não se moveu. Eram nove horas quando o telefone soou de novo e ele não se moveu. "Ela está sabendo agora como é bom ligar e ninguém atender!" O telefone tocou ainda umas três vezes e ele, impassível, não atendeu. Foi dormir tarde da noite, triste, mas vingado.
No dia seguinte, às dez da manhã, ela ligou: "Benzinho, vamos ao cinema hoje, não? Estou louca pra ver aquele filme inglês e mais ainda pra te ver!" Ele, meio sem jeito, perguntou: "Você ligou para mim ontem à noite?" E ela : "Não liguei, não; cheguei tarde em casa e caí na cama".