terça-feira, 2 de agosto de 2011

Comunicação com os filhos - Rosely Sayão

Um fenômeno bem interessante tem ocorrido nas relações entre pais e filhos. Trata-se da dificuldade que muitos pais experimentam para conversar com os filhos sobre alguns fatos da vida deles -fenômeno que ocorre principalmente a partir da adolescência.
Primeiro, vamos entender como essa comunicação ocorre no início da vida das crianças.
Alguns pais conversam com seus filhos pequenos como se eles já fossem adultos. Isso significa ignorar que eles têm uma visão especial do mundo, que é fantástica e imaginativa. A fala dos adultos, racional e objetiva, é mais um fator a arrancar a infância das crianças.
Assim, muitas crianças pequenas são obrigadas a enfrentar conversas cheias de detalhes do universo adulto que não entendem ou entendem de modo muito peculiar. Só para exemplificar: pais que se separam, cheios de boas intenções, tentam explicar os motivos do rompimento e terminam por expor detalhes do relacionamento que a criança não deveria saber. Um garoto de quatro anos, ao ouvir uma história de fadas, comentou que o pai não morava mais com a mãe porque este havia sido enfeitiçado por uma bruxa e era prisioneiro dela. Esse é o mundo infantil, é assim que a criança tenta entender o que ocorre à sua volta.
Bem, os filhos crescem e, aos poucos, passam a se relacionar com o mundo como adultos. É uma aprendizagem, por isso precisam da orientação dos pais. É aí que a coisa pega, porque muitos pais criam um conflito: deixam que os filhos tenham vida de gente grande, mas se comunicam com eles como se eles fossem crianças.
Vejamos alguns exemplos. Uma mãe soube, pela amiga da filha, que ela havia experimentado maconha e não teve coragem de abordar o assunto com a garota. Outra mãe constatou que o filho trazia da escola objetos que não eram dele e optou por levar o menino, de 13 anos, para um tratamento psicológico porque não conseguiu falar com ele sobre o tema. Um casal viu, num site de relacionamentos, que o filho se referia às mulheres de modo preconceituoso e ofensivo, mas preferiu não dizer nada ao filho.
Nos casos citados, os pais ficaram melindrados para conversar com os filhos. E, em todos eles, os adolescentes já tinham condições de enfrentar um diálogo franco e arcar com as conseqüências de seus atos.
Aliás, todos eles precisavam da orientação dos pais, não é? Os filhos têm o direito de saber o que os pais sabem sobre a vida deles e também o de ouvir a opinião dos pais sobre o que fazem e como vivem. Só tendo uma relação transparente com seus responsáveis eles aprenderão a agir da mesma maneira na própria vida. Afinal, o que se opõe à conversa franca e aberta com o maior interessado, que é quem toma determinada atitude, é a fofoca, não é?

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O poder do capacete - NELSON MOTTA

Qualquer pessoa que exerce atividade de risco usa capacete. De metal, de fibra ou de plástico, sempre coloridos, eles protegem pilotos de carros, motos e aeronaves, operários de usinas, minas, fábricas e construções, além de militares, policiais e bombeiros. É um símbolo forte de trabalho, de ação e de perigo, e até mesmo de coragem, porque pressupõe os riscos de quem o usa.
Depois do cocar de penas que os caciques indígenas oferecem aos caciques políticos, e que eles hesitam em colocar na cabeça pela crença de que traz má sorte, é com o capacete de segurança que eles ficam mais engraçados, visitando obras, fábricas e usinas.
Até o fechamento desta edição, não havia registro de nenhum caso de um político que tenha sido salvo de algum dano na cabeça pelo capacete. Aliás, jamais aconteceu qualquer acidente com alguém nessas inaugurações e visitas.
O pessoal que pega no pesado nas obras e corre riscos reais é que precisa usar, mas, quando os caciques os visitam, tudo vira um teatrinho, sem nenhuma atividade que possa provocar riscos ou sustos. Mesmo assim eles não dispensam o capacete, apesar do paletó e da gravata. E ficam todos com aquela cara ... reparem só.
Respeitáveis homens públicos, grandes estadistas, líderes carismáticos, ninguém resiste ao ridículo com aquele penico colorido encarapitado no cocuruto, sempre parecendo não lhes caber direito na cabeça. Talvez o problema não seja o tamanho dos capacetes, que os há para cabecinhas e cabeçorras, mas a falta de prática dos usuários. Mulheres então, coitadas ...
Estas são imagens clássicas dos políticos no poder, lançando, tocando e inaugurando as suas obras. Não há campanha eleitoral sem elas. Não há politica no Brasil sem ele, o capacete.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Até tu, Brutus, meu filho?!? - LULI RADFAHRER

Um automóvel é uma invenção maluca. Cem automóveis são uma novidade com tantos problemas de infraestrutura que tem cara de moda passageira. Dez mil automóveis dão a seus donos uma sensação de estilo e exclusividade. Um por família faz com que o urbanismo se reconfigure. Um por pessoa obriga todos a mudarem seu estilo de vida.
Um celular é ficção científica. Mil celulares parece capricho de gente rica, sem bateria ou sinal confiável. Um aparelho por família impacta o trabalho e a segurança. Um por pessoa muda indústrias e instituições que nunca o levaram a sério. Uma câmara em cada um redefine comércio, serviços, turismo, cidadania e privacidade.
Novas tecnologias impressionam exatamente por serem inéditas. Sua primeira versão costuma ser um trambolho que mal funciona, oferecendo, à custa de muito esforço, uma vantagem marginal com relação aos processos que substitui. Seu aperfeiçoamento é lento e irregular. Quando finalmente amadurecem, se tornam invisíveis. É exatamente nesse ponto que transformam a vida de quem tem contato com elas. Só se pensa na importância da energia elétrica ou do saneamento básico quando deixam de funcionar.
Ninguém levaria a sério alguém que dissesse que um produto inventado daqui a cinco anos seria, daqui a uma década, maior do que toda a internet. No entanto foi isso o que aconteceu com o YouTube. Criado em 2005, em 2010 ele ocupava, sozinho, mais banda do que toda a rede na virada do século.
Uma tecnologia é a manifestação física de ideias. Como toda ideia, pode dar errado por ser popular. É o que acontece com os adolescentes internados por problemas cardíacos derivados do excesso do consumo de energéticos. Ideias bem-intencionadas também podem falhar porque tornam possíveis novos problemas que jamais existiriam se elas não surgissem. Computadores e smartphones velozes e conectados permitem o trabalho ininterrupto e forçam seus usuários a jornadas de intensidade e duração nunca imaginadas. Em zonas de guerra, estilhaços de mísseis interceptados caindo aleatoriamente podem provocar mais danos do que os próprios mísseis.
A integração das tecnologias cria sistemas complexos e interdependentes. Por mais que sejam planejados para evitar danos, quando os improváveis se acumulam, os efeitos podem ser catastróficos. É o que se viu em Fukushima e Tchernobil, mas também é o que se vê em acidentes bem mais próximos, como a queda do voo AF 447.
Não faz sentido se opor à tecnologia. Isso é bobagem de rico. Quem está do outro lado da barreira da exclusão não pensa se deve adotar esta ou aquela máquina, mas simplesmente quando irá fazê-lo. É fundamental, no entanto, compreender a novidade. Ninguém de bom senso quer uma web com menos páginas, mas todos querem ferramentas melhores para selecionar a informação que existe lá. É por fazer esse filtro que Google, Twitter, Facebook e Wikipédia são populares.
Ideias, enfim, nascem para se procriar. Por mais que toda gestação possa camuflar uma gordura, o bebê é inevitável. Durante muito tempo, as técnicas foram como crianças, dependentes e previsíveis. A rede as colocou em sua adolescência. Quem não mudar o diálogo que tem com elas não terá como compreendê-las.

O demolidor - Bruno Vinícius

Crônica do Leitor do Blog

Estão demolindo o mundo! Foi o primeiro pensamento que tive pela manhã. Mas logo percebi que estava equivocado, porque estavam demolindo só metade. O homem que bate forte com a sua marreta não é necessariamente o culpado, provável que a marreta tenha mais culpa que ele. Responsável mesmo por toda essa destruição é o meu vizinho, que teve a ideia de quebrar a própria parede, espero que não seja pra levantar outra. Paredes são como preconceitos, impedem a visão. Mas a questão não é visionária e sim incomoda, pois é incrível como o barulho parece ser aqui dentro da minha casa; não há nada mais invasivo do que barulho de marreta, observação que me fez comprar uma. Agora não baterei mais palmas na casa de amigos, darei marretada no chão - alguém vai me atender.
Sei que parece muito egoísmo da minha parte implicar com a reforma do vizinho, porque talvez um dia eu também queira reformar, se não for a minha casa talvez seja a dele.
Aff...
Percebo que o Homem por trás da Marreta (isso daria um belo filme) tem certa técnica, e quando começa a ficar insuportável o barulho, e a gente, uma pessoa irreconhecível, ele para. A calma nos retorna como se tivesse ido comprar pão.
O fermento da calmaria age ao contrário, ao invés de crescer diminuí. Antônimo de guerra, paz. Mas o homem parece conhecer a panificadora e o efeito da massa, no tempo certo recomeça e no tempo errado para. Não sei se compliquei misturando pão com marreta, uma coisa é certa, meu café seria bem melhor se não tivesse marreta com pão.
O homem bate bem ao lado do quarto dos meus sobrinhos, que por incrível que pareça, dormem como anjinhos. Eles não poderiam dormir de outro jeito. E aí está a lição das crianças. Não se preocupem com as marretadas que a vida dá. Não posso desprezar o controle de Deus em toda essa situação. Porque até a ideia de reforma ele permitiu que o vizinho tivesse. Condições pra comprar a marreta e saúde para o demolidor. Pra mim a lição deve mesmo ser de paciência. E eu nunca quis aprender nada com tanta rapidez!

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O prazer de matar mosquitos - MARCELO COELHO

UMA AMIGA que mora no Rio conta que a nova mania de consumo na cidade é uma raquete elétrica, utilizada para exterminar mosquitos. Na internet, pode ser comprada a preço baixo.
Depoimentos de consumidores não apenas comprovam a sua eficácia como também atestam o prazer que pode existir na eletrocução de pernilongos. O inseto é "fulminado" de um modo que nenhuma propaganda de aerossol poderia prometer em sã consciência.
E, se deixarmos a raquete em contato com o inimigo, ele "explode", emitindo um pequeno ruído capaz de satisfazer nossos instintos mais secretos de vingança.
Fico pensando se essa explosão não se deve à circunstância de o pernilongo estar já empanturrado do sangue de seu assassino. Seja como for, uma coisa é certa.
Alguém está ganhando dinheiro com o inusitado invento. É o que costuma acontecer nas crises.
Quem não se lembra daquelas lâmpadas econômicas que floresceram durante o apagão? Entrei feliz em casa, certo dia, com uma grande sacola de supermercado abarrotada do produto. Sentia-me colaborando com o esforço cívico imposto pelas autoridades e orgulhoso, além disso, de ser um consumidor inteligente.
Minha sensação de inteligência durou menos que o clique de um interruptor, porque eu não tinha reparado, na gôndola de ofertas, que todas aquelas lâmpadas eram para 220 volts.
Tivesse eu uma raquete elétrica naquele tempo, teria sem dúvida destruído, bulbo a bulbo, aquela coleção de inutilidades domésticas. "É eletricidade o que vocês querem?
Então, tomem isto!"
Hoje em dia, poucas daquelas lâmpadas sobrevivem, com sua luz zumbi, numa ou noutra sacada, na frente de alguma loja falida, em alguma sala de espera de hospital, onde, se for no Rio, gente com dengue faz fila, ardendo de febre e impotência.
Talvez por isso mesmo as raquetes elétricas atraiam tanto desejo de consumo. Na impotência, consumir é sempre um consolo.
Ainda mais quando o produto libera impulsos de agressividade. Talvez seja, infelizmente, uma verdade sobre a natureza humana o que observo a seguir.
Por mais que se diga que "prevenir é melhor do que remediar", ninguém tira nenhuma compensação simbólica, subjetiva, do fato de prevenir o que quer que seja. Qual a graça de esvaziar pneus velhos cheios de água, de tirar bacias de plástico do relento? E como dormir sossegado quando não se sabe se o vizinho, para nada dizer das autoridades, tomou alguma iniciativa para eliminar os ovos do mosquito?
De resto, o que é a contracepção, ou mesmo o aborto num início de gravidez, perto da eficácia, da visualidade épica e incontestável de um assassinato?
Na mesma linha de raciocínio, como acusar de homicidas os governantes? Fizeram pouquíssimo para impedir que a dengue vitimasse dezenas de crianças; mas, afinal, é disso mesmo que se trata. Não fizeram nada de mais.
Já a certeza concreta de ver o mosquito morto, longe de qualquer virtualidade preventiva, confere a cada cidadão um poder palpável. Ele faz a sua parte, ou melhor, faz justiça: todo pernilongo, embora possa não ser um Aedes aegypti, tem sua parcela de culpa.
Não é um daqueles jovens que são trucidados em supostos confrontos com a polícia, e que depois se revelam completos inocentes. E uma coisa é possuir um 38 dentro de casa, para corrigir possíveis omissões dos grupos de extermínio, e outra é dar voleios de raquete elétrica no remanso do lar, coisa bem mais divertida.
E sofisticada também. Costumo matar meus mosquitos à mão. Já me aconteceu a felicidade de encontrar um e outro pousado na página do livro que estava lendo: num gesto extremo e terminante de recusa à civilização, fechei o volume com raiva sobre a vítima. O pernilongo ficou para sempre ali, estampado como um asterisco histórico que atestasse, preto no branco, minha rara e microscópica contribuição ao bem-estar da humanidade.
O poder público que se recolha à sua insignificância, e não invente de proibir as raquetes elétricas.
São um símbolo do protagonismo civil e da livre iniciativa. São um adendo e um substituto ao perigoso esporte do frescobol em praias superlotadas. Mate-se o mosquito, o "meu" mosquito (de preferência com explosão), e que o resto do mundo sobreviva, como puder, no seu unânime zumbido de inseto.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Tragédias na mídia - ROSELY SAYÃO

Nas últimas semanas, temos sido bombardeados, por todas as mídias, por notícias que revelam violências contra crianças praticadas possivelmente por adultos próximos a elas. É uma criança torturada aqui, outra ali, outra que morre lá e assim por diante. E não podemos esquecer que as crianças, hoje, têm acesso a todos os veículos de comunicação e recebem essas informações.
Que sentidos elas dão a esses fatos? Tomemos dois exemplos que chegaram a mim. Uma criança, de oito anos, perguntou à mãe se o pai poderia matá-la quando ficasse muito bravo. Outra, um pouco mais nova, perguntou se iria ficar de mãos amarradas quando fosse ao castigo. Certamente, muitos leitores devem ter passado por experiências semelhantes com seus filhos e seus alunos.
As crianças estão angustiadas com tais notícias porque identificam nelas que os adultos próximos, ao invés de de protetores, podem ser ameaçadores. Justamente aqueles em quem elas depositam a maior confiança se revelam, nas notícias, suspeitos de agir de modo contrário. E agora?
Agora, mais uma parte da infância de nossas crianças fica comprometida, fato cada vez mais banal. Mas será que não se pode fazer nada? Sim, podemos e devemos fazer algo por elas, que, sozinhas, não conseguem entender e expressar toda a angústia que as invade.
A maioria das escolas costuma ignorar o fato de que seus alunos sabem dessas notícias e continuam seus trabalhos como se nada de excepcional ocorresse. Pois todas elas têm recursos para, de alguma maneira, tratar dessas questões. É um bom momento, por exemplo, para oferecer aos alunos, nas aulas de expressão artística, estratégias para dar forma ao que eles imaginam, sentem e pensam sobre tais fatos.
O simples fato de colocar de modo simbólico sentimentos e angústias já aponta pistas sobre outras formas de trabalhar o tema. Depois, é importante que se fale a respeito, sem psicologismos nem interpretações leigas, para que, coletivamente, eles se sintam acolhidos em suas preocupações e aprendam sobre os direitos das crianças e dos adolescentes e os valores sociais da justiça e da responsabilidade com o bem comum.
Para os pais, esse é um bom momento para oferecer aos filhos mais segurança em relação aos vínculos familiares e dar maior relevância aos valores morais e éticos. É muito importante, por exemplo, afirmar que a família ama e respeita a vida, que nenhuma violência deve ser aceita pelos integrantes do grupo familiar, que casos como os noticiados são exceções -apesar de tanto alarde-, que os impulsos agressivos podem ser controlados e, também, estabelecer um diálogo a respeito das opiniões dos pais e dos filhos sobre esses fatos.
Todas as tragédias servem para nos fazer refletir sobre a humanidade e o nosso cotidiano. Por isso, é importante que os adultos pensem a respeito das pequenas violências, simbólicas ou reais, que o mundo adulto comete contra os mais novos. Afinal: nossas posições demonstram que somos a fim deles ou que estamos mais para ser o fim deles?

sábado, 4 de junho de 2011

Verdades e mentiras do cinema - CARLOS HEITOR CONY

QUANDO A criancinha no colo da mãe disse que o rei estava nu, ninguém pensou em promover um ato público em defesa da roupa inexistente e do rei pelado.
Discretamente, os áulicos da comitiva real devem ter feito uma barreirinha, protegendo a nudez do monarca, que logo voltou ao palácio e se colocou em trajes convencionais.
Pulo do conto do Hans Christian Andersen diretamente para a sessão de cinema aqui no Rio onde um filme de Glauber Rocha estava sendo exibido pela milésima vez.
Uma voz se levantou da platéia, era de Madureira, não o subúrbio, mas o humorista homônimo, que declarou que o filme (não o Glauber) era uma merda.
Estupor entre as cultas gentes! Ranger de dentes!
Como podiam ter deixado um cara daqueles, que não pertencia ao povo eleito, penetrar no sagrado pátio, no templo da arte do Terceiro Mundo que salvará a espécie humana das tiranias e do uso desenfreado da Coca-Cola e dos filmes do Rambo?
Lembro uma sessão no velho Polytheama, onde se exibia um filme de Kubrick, "2001 - Uma Odisséia no Espaço". Silêncio sepulcral na sala, dividida na platéia propriamente dita e no balcão, ambos lotados e perplexos.
Nem mesmo a música de Richard Strauss quebrava o espanto de todos, antes, o acentuava, tornando-o monumental, epifania de um futuro que começaria naquele instante.
Uma voz vinda lá de cima, sarça ardente queimando no Monte Sinai instalado no largo do Machado, desceu como um pássaro de bronze avisando a todos:
- Estou entendendo tudo!
Ninguém se mexeu. Havia um eleito que estava entendendo aquilo tudo. Todos estavam salvos.
Voltando ao filme de Glauber, o desabafo de Madureira produziu o mesmo efeito.
Ninguém discordou, pelo contrário, todos ficaram mais convencidos ainda da grandeza do filme.
Eu próprio, que não estava lá para presenciar momento tão transcendental, folguei que afinal alguém tentasse colocar as coisas no lugar.
Glauber é um gênio, não houve outro entre nós. O diabo é que ele não encontrou um veículo apropriado, caótico como ele, universal como ele, para expressar a sua genialidade.
Teve de usar o material que estava à sua disposição, um material fantástico, sim, mas impotente para movimentar as turbinas submersas que iluminariam o mundo que ele pretendia criar.
Deu tiros em várias direções, partindo sempre do eixo imóvel de suas raízes e de seu tempo -tempo que ele criava com um grão de loucura que não fazia sentido, mas fazia bonito, um bonito redundante, formado por lugares comuns gritados por seus personagens ("O cinema do Terceiro Mundo venceu o capitalismo ocidental na Guerra do Vietnã!") ou brandidos por flâmulas coloridas na ponta de fuzis descarregados -todos os filmes dele têm esse balé de bandeiras, estandartes que rodopiam enquanto uma voz em off, solene e ameaçadora, garante que o homem vencerá o dragão.
Não há humor nem ironia em seus filmes, as mensagens são as mesmas, extensas, com um sentido que só ele entende: o fraco é o forte e o forte é um filho da puta.
Faltou a Glauber ter inventado uma arte que não fosse o cinema, que transcendesse o cinema.
Poesia, romance, teatro, ópera, embolada sertaneja, todas as expressões populares ou eruditas de sua visão de mundo, tudo o que ele tentou na busca de uma linguagem própria, não passou de um genial delírio no qual ele acreditava, como se tivesse a um passo da descoberta definitiva e vital.
Seria o caso de perguntar: o que o cinema representava para Glauber Rocha?
Na minha opinião, o cinema para ele era um duende infantil, que habitava salas escuras, a cada sessão se materializava, depois retornava à dimensão gasosa de uma coisa inexistente.
Dou um exemplo que parece não ter nada com Glauber. Toda a vez que passava em frente ao cinema América, na praça Saens Peña, Adolpho Bloch pisava de mansinho e falava baixo.
Ali ele assistira em criança à "O Corcunda de Notre Dame" diversas vezes, pensava que o corcunda morava ali, se não estivesse trabalhando na tela, tocando o seu sino de bronze, ele estaria ali nos seus domínios de duende, protegido pela escuridão do salão deserto, até que um contra-regra diabólico o despertasse e o obrigasse a ser o monstro iluminado que metia medo nas criancinhas. Uma forma de ver e sentir o cinema como a verdade.

La hora de la verdad - MARIO VARGAS LLOSA

Aunque no soy creyente, tengo muchos amigos católicos, sacerdotes y laicos, y un gran respeto por quienes tratan de vivir de acuerdo con sus convicciones religiosas. El cardenal Juan Luis Cipriani, arzobispo de Lima, en cambio, me parece representar la peor tradición de la Iglesia, la autoritaria y oscurantista, la del Index, Torquemada, la Inquisición y las parrillas para el hereje y el apóstata, y su reciente autodefensa, Los irrenunciables derechos humanos, publicada el 1 de mayo en Lima, justifica todas las críticas que en nombre de la democracia y los derechos humanos recibe con frecuencia y, principalmente, de los sectores católicos más liberales.

En su texto, desmiente que dijera jamás que "los derechos humanos son una cojudez" (palabrota peruana equivalente a la española gilipollez) y afirma que, en realidad, a quien aplicó tal grosería fue sólo a la Coordinadora de Derechos Humanos, una institución dirigida por una ex religiosa española, Pilar Coll, que durante los años de las grandes matanzas perpetradas por la dictadura fujimorista llevó a cabo una admirable campaña de denuncia de los crímenes, torturas y desapariciones que se cometían con el pretexto de la lucha contra Sendero Luminoso. (La Comisión de la Verdad, que presidió el ex rector de la Pontificia Universidad Católica del Perú, Salomón Lerner, ha documentado estas atrocidades).

El cardenal Cipriani desmiente, además, que durante la dictadura hubiera guardado silencio frente a uno de los crímenes colectivos más abyectos cometidos por Fujimori y sus cómplices: la esterilización, mediante engaños, de unas 300.000 campesinas a las que, por orden del dictador, los equipos del Ministerio de Salud ligaron las trompas o castraron, asegurándoles que se trataba de simples vacunas o de una medida que sólo temporalmente les impediría concebir. ¿Cómo es que nadie se enteró en el Perú de que el arzobispo había encontrado reprobables estos atropellos? Porque en vez de protestar públicamente ¡se limitó a hacerlo en privado, es decir, susurrando con discreción su protesta en el pabellón de la oreja del dictador!

El cardenal no suele ser tan discreto cuando se trata de protestar contra los preservativos y no se diga el aborto, o, para el caso, contra quienes en esta segunda vuelta de las elecciones peruanas apoyamos a Ollanta Humala. Por ejemplo, por haberlo hecho yo, me ha amonestado de manera estentórea y nada menos que desde el púlpito de la catedral de Lima, durante un oficio. Me ha pedido "más seriedad" y ha clamado que cómo me atrevo a dar consejos por quién votar a los peruanos. El cardenal está nervioso y olvida que todavía hay libertad en el Perú y que cualquier ciudadano puede opinar sobre política sin pedirle permiso a él ni a nadie. (Claro que las cosas cambiarán si sale elegida la señora Fujimori, la candidata a la que él bendecía en aquel mismo oficio en el que me prohibía opinar).

No sólo el arzobispo de Lima se excede en estos días de campaña y guerra sucia en el Perú. Una connotada fujimorista, también del Opus Dei, como monseñor Cipriani, Martha Chávez, ha amenazado públicamente al presidente del Poder Judicial, el doctor César San Martín, eminente jurista que presidió el Tribunal que condenó a 25 años de cárcel a Fujimori por crímenes contra los derechos humanos, con esta frase profética: "Tendrá que responder en su momento".

Pero acaso lo más inquietante sean los intentos de purgar a los medios de comunicación, principalmente los canales de televisión, de periodistas independientes y probos, que se resisten a convertirse en propagandistas de la candidatura de la hija del ex dictador. El caso más sonado ha sido el de Patricia Montero, productora general, y José Jara, productor de un noticiero, ambos del Canal N, despedidos, según ha denunciado la primera de ellos, porque los directivos estimaron que habían "humanizado" al candidato Humala en los boletines (¿pretendían que lo animalizaran, más bien?). Estos despidos han provocado una verdadera tempestad de críticas, entre ellas de los más prestigiosos periodistas del propio Canal N, en defensa de sus colegas, y amenazas de renuncias masivas en caso de que continúe la caza de brujas. Lo cual parece haber paralizado por el momento el despido de la prestigiosa y experimentada periodista del Canal 4, Laura Puertas, a quien se reprocha también, por lo visto, padecer de total ineptitud para el servilismo.

Finalmente, una denuncia publicada el miércoles 4 de mayo en el diario La Primera, que dirige César Lévano, precisa que el gobierno, apoyado por empresarios mineros, habría encargado a los servicios de inteligencia del Estado un Plan Sábana, destinado a destruir la campaña de Ollanta Humala con los métodos delictuosos -espionaje telefónico, operaciones calumniosas y escandalosas filtradas a la prensa para minar su prestigio y el de su entorno familiar utilizando mercenarios y provocadores- con que, en 1990, el gobierno conspiró contra mí cuando yo fui candidato a la Presidencia. La denuncia proviene, al parecer, de militares y civiles del servicio de inteligencia indignados de que se los utilice para fines políticos ajenos a su misión específica.

Todo esto merece una reflexión. Si estas cosas comienzan a ocurrir ahora, en plena campaña electoral, ¿no es fácil imaginar lo que sucedería en el caso de que la señora Fujimori ganara las elecciones y la dictadura fuji-montesinista recuperara el poder oleada y sacramentada por los votos de los peruanos? Los periodistas decentes y responsables expulsados de sus puestos no serían cinco (también han sido despedidos tres de Radio Líder, Arequipa) sino decenas, y las radios, los canales y los periódicos convertidos, como lo estuvieron durante los ocho años de oprobio que vivió el Perú, en órganos de propaganda encargados de justificar todas las tropelías y tráficos del poder y de cubrir de injurias y calumnias a sus críticos. No sólo el doctor César San Martín sería víctima de su probidad y entereza magisterial. Todo el Poder Judicial se vería una vez más sometido a una criba implacable para apartar de sus cargos, o reducirlos a la total inoperancia, a los jueces que se resistieran a ser meros instrumentos dóciles del gobierno. Reparticiones públicas, Fuerzas Armadas, empresas privadas, serían, otra vez, incorporadas al sistema autoritario para que, de nuevo, el país entero quedara a merced del puñadito de forajidos que, entre los años 1990 y 2000, perpetró el más espectacular saqueo de las arcas públicas y los más horrendos crímenes contra los derechos humanos de nuestra historia.

Quienes quieren semejante futuro para el Perú no son muchos, pero sí son poderosos y, como están asustados con la perspectiva de que Humala gane las elecciones y cometa los desafueros y horrores de Hugo Chávez en Venezuela, están dispuestos a cualquier cosa con tal de asegurar el triunfo de Keiko Fujimori. Extraordinaria paradoja: con tal de evitar el socialismo, que venga el fascismo. ¡Y todo eso, en nombre de la libertad, de la democracia y del mercado libre!

En verdad, la disyuntiva que tiene por delante el Perú en las elecciones del 5 de junio próximo, es la de salvaguardar la imperfecta democracia política que tenemos desde hace 10 años y una política de mercado y de apertura al mundo que ha hecho crecer nuestra economía de manera notable, o volver a un régimen dictatorial que, guardando ciertas formas institucionales, restablecería en el gobierno a quienes, en complicidad con Fujimori y Montesinos, destruyeron el Estado de derecho, se enriquecieron cometiendo las más descaradas pillerías y durante ocho años perpetraron horrendos crímenes con el pretexto de combatir la subversión. A mi juicio en semejante disyuntiva la peor opción es Keiko Fujimori.

Ollanta Humala ha hecho un "Compromiso con el Pueblo Peruano" que conviene tener muy presente, no sólo a la hora de votar por él, sino sobre todo una vez que acceda al gobierno, para recordárselo cada vez que parezca apartarse de alguna de sus promesas. No habrá reelección. Se cumplirá con los tratados firmados, no habrá estatizaciones, se respetará el derecho de propiedad y las Administradoras de Fondos de Pensiones (AFPs), la lucha contra la corrupción será implacable, habrá una política de apoyo social sostenida, sobre todo en los campos de la educación y la salud pública, para los sectores más desfavorecidos, así como estímulos y facilidades para la formalización de las empresas. El respeto al pluralismo informativo, a la independencia de la prensa y al derecho de crítica será total. Estos puntos han sido expresados, además, de viva voz, en las reuniones que ha celebrado el candidato con la confederación de empresarios y las asociaciones de prensa. Todo esto es perfectamente compatible con la democracia y con las políticas de mercado vigentes y tiende a perfeccionarlas, no a recortarlas ni menos suprimirlas. No sólo depende de la voluntad de Ollanta Humala que este compromiso se cumpla. Depende, sobre todo, de que quienes lo apoyemos en la elección del 5 de junio dejemos claro que es a estas políticas a las que damos nuestro apoyo y que nos mantendremos firmes exigiendo su cumplimento.

© Derechos mundiales de prensa en todas las lenguas reservados a Ediciones EL PAÍS, SL, 2011. © Mario Vargas Llosa, 2011.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O ataque do ''vírus da irrelevância'' - ARNALDO JABOR

Um amigo meu, muito culto, tem um filho muito "conectado" na internet. E o menino disse a ele: "Pai, você sabe tudo que já aconteceu, mas não sabe nada do que está acontecendo". O pai, como todos nós, embatucou. A mutação cultural dos últimos anos foi tão forte, a turbulência no mundo pós-industrial dissolveu tantas certezas, que caímos num vácuo de rotas.

Não só no Brasil, mas no mundo inteiro, artistas e pensadores vivem perplexos - não sabem o que filmar, escrever, formular. Em geral, recorrem às atitudes mais comuns nas turbulências: desqualificar os fatos novos e reinventar um "absoluto" qualquer. Sinto em mim mesmo como é difícil criar sem esperança ou finalidade. Como era gostoso nosso modernismo, os cinemas novos, os movimentos literários, as cozinhas ideológicas. Os criadores se sentiam demiurgos falando para muitos. Agora, na falta das "grandes narrativas" do passado, estamos a idealizar irrelevâncias, como se ali estivessem pistas para novas "verdades" a desvelar - a aura deslizou da obra para o próprio autor.

Hoje, as palavras que eram nosso muro de arrimo foram esvaziadas de sentido e ficamos à deriva. Por exemplo, "futuro". Que quer dizer? Antes, era visto como um lugar a que chegaríamos, um lugar no espaço-tempo, solucionado, harmônico, que nos redimiria da angústia da falta de "Sentido". Agora, no lugar de "futuro", temos um presente incessante, sem ponto de chegada. Pela influência insopitável do avanço tecnológico da informação, turbinado pelo mercado global, foram se afastando do grande público as criações artísticas e literárias, as ideias filosóficas, os valores. Em suma, toda aquela dimensão espiritual chamada antigamente de cultura que, ainda que confinada nas elites, transbordava sobre o conjunto da sociedade e nela influía, dando um sentido à vida e uma razão de ser para a existência. Mais ou menos isso Vargas Llosa escreveu outro dia no El País, num ensaio chamado A Civilização do Espetáculo.
A verdade é que passamos da ilusão para o desencanto.
Temos hoje uma "horrenda liberdade" sem fins, porque (vamos combinar) os criadores querem mesmo é ser eternos, inesquecíveis, mesmo os mais radicais "instaladores" contemporâneos.

Nunca tivemos tantos criadores, tanta produção cultural enchendo nossos olhos e ouvidos com uma euforia medíocre, mas autêntica. Há uma grande vitalidade neste cafajestismo poético, enchendo a web de grafites delirantes. Não sei em que isso vai dar, mas o tal "futuro" chegou; grosso, mas chegou.
Talvez este excesso de "irrelevâncias" esteja produzindo um acervo de conceitos "relevantes", ainda despercebidos. Podemos nos dedicar ao micro, ao parcial, podemos nos arriscar ao erro com mais alegria; mas, isso não pode justificar um desprezo pela excelência. E o pior é que as tentativas de "grande arte" são vistas com desconfiança, como atitudes conservadoras, diante da cachoeira de produções que navegam no ar. Isso me lembra o tempo em que achávamos que o "fluxo da consciência", "the stream of consciousness" ou até o discurso psicótico encerravam uma sabedoria insuspeitada. Será que houve a morte da "importância"? Ou ela seria justamente esta explosão de conteúdos e autores? O "importante" seria agora o quantitativo? Não sei; mas, se tudo é "importante", nada o é. A importância de uma obra reside no grau de decifração da vida de seu tempo e para onde ela aponta, mesmo no túnel sem luz.

Se olharmos as obras-primas de, digamos, Jan Van Eyck, o gênio holandês, vemos ali todo o espírito da Idade Média, revelada nos detalhes mais banais, mesmo nas encomendas de príncipes ou cardeais.
Escrevo estas coisas porque meu artigo de hoje é a propósito de um "importante" ensaio de Alcyr Pécora de 23 de abril, no Prosa e Verso de O Globo, sobre a crise de nossa literatura. Alcyr acha que fomos atacados por "um vírus de irrelevância".

Ele escreveu:
"É como se o presente se absolutizasse e não mais admitisse um legado cultural como patamar exigente de rigor para sua produção(...) é como se alguma coisa se introduzisse na cultura e a tornasse inofensiva, doméstica. (...) A ação já se apresenta como narrativa, como ocorre nos reality shows, em que as pessoas, antes de agir, representam ou narram a ação que lhes cabe, como se todo mundo fosse interessante o bastante para ser visto/lido (...) Não basta haver conhecimento; tem de se produzir o que não é e o que não há (...) Na arte, não há nenhum valor simbólico que substitua o objeto (...) não há atitude ou opção ideológica que permita saltar sobre os mecanismos da composição (...) Perdida a noção de herança cultural, perde-se a de crítica, de autocrítica, e naturalmente a de criação (...) Escrever literatura é um gesto simbólico que traz uma exigência: a de ser de qualidade (...) A recusa de muitos escritores de sequer considerar o impasse atual tem qualquer coisa de cegueira deliberada (...) Atitude resolve problemas do roqueiro, mas não resolve a questão da literatura".

No entanto, as questões levantadas pelo professor não tiveram repercussão teórica maior, além de reclamações mal-humoradas de que ele seria um crítico "estraga-prazer, um intrometido".
Contudo, é preciso que esses tópicos sejam discutidos, com ou sem polêmicas, pois, na tal conversa do pai erudito com o filho conectado, a resposta do pai poderia ser: "Você acha que sabe tudo que está acontecendo e nada sabe sobre o que já aconteceu".

Por isso, dou uma pequena contribuição ao assunto: tenho um filho de 11 anos, João Pedro. Eu, zeloso pai, botei o Quarteto de Cordas op. 133 de Beethoven para que ele ouvisse um momento máximo da história da música. Ouviu tudo atentamente enquanto, no ritmo exato do quarteto, jogava um game, o Hell Kid no iPad.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O ônibus é a praia do povo - Anna Veronica Mautner

Há alguns anos, eu me pergunto o porquê dessa onda de usar roupas apertadas, seguramente de numeração menor do que o corpo que vestem. A moda "pegou" especialmente entre as mulheres das classes menos favorecidas, ditas trabalhadoras. Conforme se sobe na escala social, a numeração vai aumentando. Mas isso seria assunto de sociólogo.

Quer confirmar? Basta olhar em volta, no metrô ou à espera dele, no ônibus ou à espera dele, para encontrar mulheres que não se inibem em mostrar os recortes de seu corpo e até das partes... como as chamaremos? Depois, é só olhar a roupa dos ricos, estampada nas revistas, na televisão: as supostas formadoras de opinião se vestem diferente.
Dizer que as roupas baratas não são feitas em números grandes não é verdade -ou, pelo menos, não justifica. Mesmo porque as mulheres magras, do povo, também se esmeram em usar roupas agarradas. Não é questão de tamanho nem de preço. Creio que é de classe social. O confeccionista faz o que tem mais saída.
Não estou discutindo se cavalo curto, entrando pelas reentrâncias, é bonito ou feio, se agrada ou não agrada, se é sexy ou não. Uma coisa é certa: cavalo curto, com camiseta curta e apertada, apela para o erótico e deve atender a algum apelo de diferenciação de gênero. Atribuo seu sucesso a Eros.
Não digo que as classes A, AA ou AAA não usem cós baixo, deixando entrever as roupas íntimas, mas a ocorrência é menor e, em geral, restrita a adolescentes que arriscam. Com o aumento da idade, a exibição é amenizada.
O que me intriga é o seguinte: dizem que as mulheres da classe trabalhadora almejam ter acesso ao universo das "madames"; mas, no que se refere ao cavalo curto e ao tamanho das roupas, observamos uma completa autonomia entre as duas classes de mulheres.
Quem me lê pode supor que estou criticando, mas não é nada disso. Escrevo para expressar a minha admiração em relação à saúde e ao orgulho com que certas mulheres menos complicadas e sofisticadas assumem seu lado erótico.
Justamente pensando nisso, ocorre-me uma idéia. Espremida entre o trabalho e todas as tarefas caseiras que lhe cabem, a mulher trabalhadora, a mulher operária, encontra no espaço da locomoção pública o lugar onde "vê e é vista". Aí ela se compara e pode viver sua sensualidade e seu erotismo.
As colunas sociais e de fofocas estão repletas de endereços onde as mulheres que não tomam condução, pois têm automóvel à sua disposição, vão para "ver e serem vistas". Os clubes esportivos e sociais, os teatros, os restaurantes, o campo e a praia constituem o espaço da paquera dos que têm acesso a esses lugares.
Na falta de tempo para freqüentar praia, clube e shopping, as mulheres da classe trabalhadora encontraram uma saída criativa. Não sendo vergonha nenhuma ser mulher e querer agradar, usam o espaço público da urbe para paquerar -ele se presta muito bem a isso. É verdade que são horas e horas de possível desconforto, mas "vendo e sendo vistas". E, para tanto, a roupa que mostra sem desvelar é o ideal, já que o biquíni na cidade é impossível.
Parabéns ao instinto de vida!

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Estragos e soluções - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Não se sabe qual é a, digamos, inclinação política do pênis. Ele é anatomicamente de centro, como todos os políticos na Itália, que se identificam como de “centrosinistra” ou de “centrodestra”, nunca de sinistra ou de destra. O pênis é centrão assumido, mas de que tendência ninguém sabe. Ele ora pende para um lado, ora para outro. Além de ser obviamente um falocrata, que se pudesse falar definiria sua posição como “sou mais eu”, sua ideologia é desconhecida. Raramente é a do seu portador, em relação ao qual mantém uma evidente independência de pensamento e ação. Há esquerdistas com pênis fascistas, conservadores com pênis sempre atrás de novas experiências sociais, liberais com pênis decididamente intervencionistas. O pênis é, por assim dizer, um livre atirador. Pênis não tem dono. Ou, dito de outra maneira, não costuma levar em consideração a conveniência dos seus donos. E como a comunicação entre o homem e o seu pênis é precária, o pênis não ouve apelos à razão e não adianta pedir para ele ter uma consciência histórica, o resultado é o estrago que vem causando a carreiras e reputações através dos tempos. Sem querer nem saber.
Veja-se o caso recente do Strauss-Kahn e do seu pênis predador. Deve ter havido uma tentativa de diálogo entre Strauss-Kahn e seu pênis antes do ataque à camareira. Não é impossível que o ex-provável candidato a presidente do seu país tenha até invocado o futuro da Europa e do mundo para tentar deter o pênis. “Arretez pour la France!”. O pênis não teria dado ouvidos. Espera um pouquinho, esqueça esta frase. O pênis não teria ligado. E fora adiante, sem nenhum prurido patriótico. E SK está politicamente liquidado. Mais uma vítima do próprio pênis.
O que fazer para que coisas assim não se repitam? A primeira solução é radical: a castração como condição para o serviço público masculino e carreiras políticas. Para o pênis aprender. A segunda solução seria a gradual substituição de homens por mulheres no poder, em todo o mundo. Uma solução que já está em curso. Os homens manteriam seu pênis mas sem a possibilidade de causar mais estragos. E pronto.

E a medicina, hein? - ANTONIO PRATA

TÔ PREOCUPADO: não sei mais bater papinho. Por "papinho" entendo essa conversa amena que puxamos com colegas de trabalho diante da máquina de café, essas palavras inócuas que trocamos com conhecidos em festas e lançamentos de livros, na fila do cinema ou no corredor do supermercado.
Admito, sem falsa modéstia, que já fui um ás do papinho. Até outro dia, era capaz de fazer hábeis trocadilhos com o título do filme em cartaz ou do livro autografado; descolava, rapidamente, uma piada com cebolas, sabão em pó ou qualquer que fosse o produto na gôndola do mercado; numa roda, ia de Leonardo da Vinci a Leandro e Leonardo, sem jamais ficar chato ou deixar a peteca cair.
De uns tempos pra cá, contudo, algo mudou: paro diante de um conhecido, digo "oi, e aí, tudo certo?", e, quando o papinho deveria brotar, as palavras somem da minha boca, como se sugadas por um aspirador de pó.
Aconteceu pela primeira vez faz uns três meses. Entrei num restaurante e dei de cara com um escritor, a quem conheço por alto, mas cuja obra muito admiro. Parei diante do sujeito, o cumprimentei e, quando abri a boca para dizer qualquer bobagem, senti o vazio fungando em meu cangote. O escritor me olhava, esperando alguma palavra -afinal, quem chega é o responsável pela introdução do papinho-, mas minha mente era uma folha em branco.
Assustado, agindo por reflexo, tomei uma atitude que ainda não consigo compreender, mesmo já passadas tantas semanas. Dei um soquinho no peito do literato e disse: "Bom apetite!".
Que tipo de ser humano, em sã consciência, dá um soquinho no peito de outro e diz "bom apetite!"?! O Ronald McDonald talvez aja assim com uma criança, numa propaganda do McDia Feliz, mas não uma pessoa de verdade -muito menos conversando com um grande escritor. Arrasado, sentei numa mesa escondida, atrás de uma coluna, e fui roer o meu remorso. Mal sabia eu que era só o começo de minha paralisia social.
Dias depois, numa festa, encontrei um ex-colega da escola, hoje oftalmologista. Nos cumprimentamos, um segundo se passou, dois, três e, então, do fundo de minha estupidez, perguntei: "E a medicina, hein?". Céus, como ele poderia responder a tamanha cretinice? Faria um discurso começando com Hipócrates e terminando na última edição da "Scientific American"? Tentaria, quem sabe, uma abordagem filosófica, dizendo que a medicina é a mais inútil de todas as estratégias humanas para driblar a morte? Meu ex-colega, contudo, resolveu se vingar na mesma chave, disse apenas "vai indo, vai indo... E você, escrevendo muito?".
De lá pra cá, por medo de cair novamente num desses bueiros sociais, estou praticando uma espécie de chavão preventivo, que consiste em dar oi e engatar imediatamente num papinho sobre o tempo. Sei que é uma estratégia burra, quase como matar-se por medo da morte, mas antes abrigar-me no morno lugar comum da meteorologia do que, debatendo-me para escapar do abismo do silêncio, terminar dando soquinhos no peito de alguém ou perguntando por aí: "E a medicina, hein?", "E o direito cível, hein?", "E a mecânica dos fluidos, hein?".
Deus me livre.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Uns braços! - CARLOS HEITOR CONY

Já contei a entrevista que fiz com Francisco Mignone por ocasião de seus 80 anos. Como qualquer jornalista imbecil, perguntei-lhe sobre seu compositor preferido ao longo de tão longa vida. Com aquele jeito malandro que ele tinha -e que o tornava tão simpático-, o maestro disse que foi mudando com o tempo.
Aos 30 anos, quando lhe faziam a mesma pergunta, ele respondia que gostava de Beethoven. Aos 50, a resposta era outra: Bach. Mas, aos 60, quando nada mais devia a ninguém, respondia com a verdade que escondera durante tanto tempo: Puccini.
Ao iniciar a carreira de compositor, ele se sentiria constrangido em confessar sua preferência por um autor de ópera italiana. Roncava os grandes nomes que fizeram a glória musical daquele miolo da Europa Central.
"Mas perdi a vergonha", disse ele.
Comigo aconteceu coisa parecida em relação a Machado de Assis. Aos 30 anos, confessava meu amor por "Dom Casmurro". Aos 40, fixei-me em "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Aos 50, assumi definitivamente "Quincas Borba", e fiquei com ele até hoje.
Quem sabe o bem ou o mal que se esconde nas preferências que vão mudando com o tempo?
Pulando da música e da literatura para a mulher (não parecem, mas têm tudo em comum), conheço um sujeito que já foi vidrado nas pernas de Cid Charisse, nos olhos de Lyz Taylor, nos seios monumentais de Sophia Loren. Só recentemente descobriu que a atração maior de seu desejo eram os braços. Não sei se ele andou lendo o conto de Machado de Assis. Outro dia, encontrei-o bestificado no meio da rua. Perguntei o que havia. Ele parecia encantado, fora do mundo. Respondeu num gemido de luxúria: "Vi uns braços!".
E mais não disse nem foi preciso.

Aceitam tudo - Sírio Possenti

De vez em quando, alguém diz que lingüistas "aceitam" tudo (isto é, que acham certa qualquer construção). Um comentário semelhante foi postado na semana passada. Achei que seria uma boa oportunidade para tentar esclarecer de novo o que fazem os linguistas.

Mas a razão para tentar ser claro não tem mais a ver apenas com aquele comentário. Surgiu uma celeuma causada por notas, comentários, entrevistas etc. a propósito de um livro de português que o MEC aprovou e que ensinaria que é certo dizer Os livro. Perguntado no espaço dos comentários, quando fiquei sabendo da questão, disse que não acreditava na matéria do IG, primeira fonte do debate. Depois tive acesso à indigitada página, no mesmo IG, e constatei que todos os que a leram a leram errado. Mas aposto que muitos a comentaram sem ler.

Vou tratar do tal "aceitam tudo", que vale também para o caso do livro.

Primeiro: duvido que alguém encontre esta afirmação em qualquer texto de linguística. É uma avaliação simplificada, na verdade, um simulacro, da posição dos linguistas em relação a um dos tópicos de seus estudos - a questão da variação ou da diversidade interna de qualquer língua. Vale a pena insistir: de qualquer língua.

Segundo: "aceitar" é um termo completamente sem sentido quando se trata de pesquisa. Imaginem o ridículo que seria perguntar a um químico se ele aceita que o oxigênio queime, a um físico se aceita a gravitação ou a fissão, a um ornitólogo se ele aceita que um tucano tenha bico tão desproporcional, a um botânico se ele aceita o cheiro da jaca, ou mesmo a um linguista se ele aceita que o inglês não tenha gênero nem subjuntivo e que o latim não tivesse artigo definido.

Não só não se pergunta se eles "aceitam", como também não se pergunta se isso tudo está certo. Como se sabe, houve época em que dizer que a Terra gira ao redor do sol dava fogueira. Semmelveis foi escorraçado pelos médicos que mandavam em Viena porque disse que todos deveriam lavar as mãos antes de certos procedimentos (por exemplo, quem viesse de uma autópsia e fosse verificar o grau de dilatação de uma parturiente). Não faltou quem dissesse "quem é ele para mandar a gente lavar as mãos?"

Ou seja: não se trata de aceitar ou de não aceitar nem de achar ou de não achar correto que as pessoas digam os livro. Acabo de sair de uma fila de supermercado e ouvi duas lata, dez real, três quilo a dar com pau. Eu deveria mandar esses consumidores calar a boca? Ora! Estávamos num caixa de supermercado, todos de bermuda e chinelo! Não era um congresso científico, nem um julgamento do Supremo!

Um linguista simplesmente "anota" os dados e tenta encontrar uma regra, isto é, uma regularidade, uma lei (não uma ordem, um mandato).

O caso é manjado: nesta variedade do português, só há marca de plural no elemento que precede o nome - artigo ou numeral (os livro, duas lata, dez real, três quilo). Se houver mais de dois elementos, a complexidade pode ser maior (meus dez livro, os meus livro verde etc.). O nome permanece invariável. O linguista isso, constata isso. Não só na fila do supermercado, mas também em documentos da Torre do Tombo anteriores a Camões. Portanto, mesmo na língua escrita dos sábios de antanho.

O linguista também constata the books no inglês, isto é, que não há marca de plural no artigo, só no nome, como se o inglês fosse uma espécie de avesso do português informal ou popular. O linguista aceita isso? Ora, ele não tem alternativa! É um dado, é um fato, como a combustão, a gravitação, o bico do tucano ou as marés. O linguista diz que a escola deve ensinar formas como os livro? Esse é outro departamento, ao qual volto logo.

Faço uma digressão para dar um exemplo de regra, porque sei que é um conceito problemático. Se dizemos "as cargas", a primeira sílaba desta sequência é "as". O "s" final é surdo (as cordas vocais não vibram para produzir o "s"). Se dizemos "as gatas", a primeira sílaba é a "mesma", mas nós pronunciamos "az" - com as cordas vocais vibrando para produzir o "z". Por que dizemos um "z" neste caso? Porque a primeira consoante de "gatas" é sonora, e, por isso, a consoante que a antecede também se sonoriza. Não acredita? Vá a um laboratório e faça um teste. Ou, o que é mais barato, ponha os dedos na sua garganta, diga "as gatas" e perceberá a vibração. Tem mais: se dizemos "as asas", não só dizemos um "z" no final de "as", como também reordenamos as sílabas: dizemos as.ga.tas e as.ca.sas, mas dizemos a.sa.sas ("as" se dividiu, porque o "a" da palavra seguinte puxou o "s/z" para si). Dividimos "asas" em "a.sas", mas dividimos "as asas" em a.sa.sas.

Volto ao tema do linguista que aceitaria tudo! Para quem só teve aula de certo / errado e acha que isso é tudo, especialmente se não tiver nenhuma formação histórica que lhe permitiria saber que o certo de agora pode ter sido o errado de antes, pode ser difícil entender que o trabalho do linguista é completamente diferente do trabalho do professor de português.

Não "aceitar" construções como as acima mencionadas ou mesmo algumas mais "chocantes" é, para um linguista, o que seria para um botânico não "aceitar" uma gramínea. O que não significa que o botânico paste.

Proponho o seguinte experimento mental: suponha que um descendente seu nasça no ano 2500. Suponha que o português culto de então inclua formas como "A casa que eu moro nela mais os dois armário vale 300 cabral" (acho que não será o caso, mas é só um experimento). Seu descendente nunca saberá que fala uma língua errada. Saberá, talvez (se estudar mais do que você), que um ancestral dele falava formas arcaicas do português, como 300 cabrais.

Outro tema: o linguista diz que a escola deve ensinar a dizer Os livro? Não. Nenhum linguista propõe isso em lugar nenhum (desafio os que têm opinião contrária a fornecer uma referência). Aliás, isso não foi dito no tal livro, embora todos os comentaristas digam que leram isso.

O linguista não propõe isso por duas razões: a) as pessoas já sabem falar os livro, não precisam ser ensinadas (observe-se que ninguém falao livros, o que não é banal); b) ele acha - e nisso tem razão - que é mais fácil que alguém aprenda os livros se lhe dizem que há duas formas de falar do que se lhe dizem que ele é burro e não sabe nem falar, que fala tudo errado. Há muitos relatos de experiências bem sucedidas porque adotaram uma postura diferente em relação à fala dos alunos.

Enfim, cada campo tem seus Bolsonaros. Merecidos ou não.

PS 1 - todos os comentaristas (colunistas de jornais, de blogs e de TVs) que eu ouvi leram errado uma página (sim, era só UMA página!) do livro que deu origem à celeuma na semana passada. Minha pergunta é: se eles defendem a língua culta como meio de comunicação, como explicam que leram tão mal um texto escrito em língua culta? É no teste PISA que o Brasil, sempre tem fracassado, não é? Pois é, este foi um teste de leitura. Nosso jornalismo seria reprovado. PS 2 - Alexandre Garcia começou um comentário irado sobre o livro em questão assim, no Bom Dia, Brasil de terça-feira: "quando eu TAVA na escola...". Uma carta de leitor que criticava a forma "os livro" dizia "ensinam os alunos DE que se pode falar errado". Uma professora entrevistada que criticou a doutrina do livro disse "a língua é ONDE nos une" e Monforte perguntou "Onde FICA as leis de concordância?". Ou seja: eles abonaram a tese do livro que estavam criticando. Só que, provavelmente, acham que falam certinho! Não se dão conta do que acontece com a língua DELES mesmos!!